João Pessoa, 06 de dezembro de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Wilson Martins, referindo-se a Câmara Cascudo, (foto) em “Um homem da província”, (Pontos de vistas 9), vê-lo como “um intelectual puro”, que vive “não apenas entre livros e para seus livros, mas através dos livros”.
Não me preocupo com o “intelectual puro”, mas fico imaginando o que seria viver entre livros, para os livros e através dos livros.
José Mindlin escreveu Uma vida entre livros. Eduardo Frieiro é autor do precioso Os livros, nossos amigos. Henry Miller tem Os livros da minha vida. Alberto Manguel, Os livros e os dias, e eu mesmo, também apaixonado do tema e dado ao arcaico aroma de raros alfarrábios, coligi umas crônicas no volume Os livros: a única viagem.
Viver entre livros, quero crer, não é somente tê-los à vista por toda a casa, além do recinto aconchegante da biblioteca, com suas inúmeras estantes arrumadas naquela hierarquia e catalogação que transcendem a ordem dos princípios científicos da biblioteconomia. É tê-los como coisas vivas, como entidades reais, como corpos que emitem a luz da sabedoria, como objetos que, a qualquer momento, podem falar acerca dos enigmas do mundo e dos segredos que habitam as fontes mais diversas do conhecimento humano.
Viver entre livros é viver e conviver com seus autores e com seus personagens, com suas ideias, histórias, conceitos, temas e linguagem, numa espécie de esfera transtemporal e numa “orgia perpétua” onde cabem todas as épocas e todos os quesitos, ou numa geografia multifária que mistura lugares físicos a regiões imaginárias, como uma dádiva irrecusável da mais perfeita tecnologia. Tecnologia só comparável à roda e à colher, segundo a engenhosa e irreverente analogia de Umberto Eco, em Não contem com o fim do livro. Viver entre livros é não viajar sem eles nem na paz nem na guerra, conforme a sugestão de Montaigne.
Isto eu sei.
Já viver para os livros é viver pensando neles dia e noite como aquele bem fundamental que não pode faltar na minha biblioteca nem no espaço cotidiano de minha vida. Viver para os livros é estar sempre à sua procura nas livrarias e nos sebos, nas feiras e nos congressos, nos eventos e seminários que os têm como pontos de referência dos encontros sociais e dos debates cognitivos. Viver para os livros é cultivar o prazer solitário da sua intimidade, é cuidar do seu conforto, da sua dignidade, da sua beleza, da sua saúde e da sua companhia, pois o livro é como uma criatura humana, não quer ficar sozinho nem fechado em si mesmo. Esquecido, muito menos. Viver para os livros é amá-los incondicionalmente, com paixão e fidelidade.
Isto eu faço.
E viver através dos livros? Ora, é saber que sou o que leio, o que tenho e o que não tenho, o que me fez dessa ou daquela maneira, no permanente jogo dialético da leitura, esta forma de felicidade, no dizer de Jorge Luís Borges. Viver através dos livros é compreender que tenho uma formação, uma tradição, um passado que não passa, um presente que pode ser mais rico e mais iluminado, um futuro desconhecido e desafiador, sempre à espreita de meus passos, quando a uma página se segue outra, quando um capítulo cresce e não acaba.
Se se vive através dos livros, dos livros guardo lições e ensinamentos, emoções, fantasias, descobertas que me alargam a visão de mundo e me educa o gosto e a sensibilidade. Viver através dos livros é saber que aquele ato, aquela emoção, aquela lembrança que me envolvem em dadas circunstâncias da vida, têm por trás, sutil e sorrateiramente, alguma coisa de Kafka, por exemplo. Alguma coisa de Dostoiévski, sinais de Dante, ecos de Baudelaire, marcas de Freud, resquícios de Pessoa, sussurros de Cecília, sugestões de Wilson Martins e dotes sapienciais de Câmara Cascudo.
Isto eu garanto.
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OPINIÃO - 22/11/2024