João Pessoa, 27 de dezembro de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Para o poeta Lau Siqueira, gaúcho radicado na Paraíba, desde 1985, “acionar as barbatanas da memória” é deixar-se envolver pelo cheiro do pêssego. Há algo de proustiano nessa experiência da memória e da intimidade. O halo metafórico, que contamina de sentidos a singularidade da expressão, como que serve, e como serve!, para o poeta juntar poemas dos quatro primeiros livros e mais alguns inéditos, subsumindo a seleção ao título geral de O inventário do pêssego (Porto Alegre: Casa Verde, 2020).
O corte cronológico vai desde 1993 a 2020 e abrange os seguintes títulos: O comício das veias (1993), O guardador de sorrisos (1998), Sem meias palavras (2002), Texto sentido (2007) e os inéditos, permitindo, assim, ao leitor, aquela indispensável visão de conjunto a revelar, por conseguinte, as diretrizes gerais que disciplinam a construção de seu discurso poético.
Uso o termo “construção” de propósito, sobretudo para o contrapor ao termo “expressão”, aproveitando um cotejo semântico que Haroldo de Campos propõe num de seus ensaios de A arte no horizonte do provável. Claro, sem que com isso queira demarcar critérios valorativos rígidos, porém, apenas deslindar os possíveis caminhos de uma dicção poética.
Digamos que os expressivos ou expressionais, como queiram, se curvam aos pedidos da catarse, aos apelos mais imediatos da emoção subjetiva, enquanto os construtivistas, sem denegar a incidência intrínseca dos sentimentos poéticos, procuram exibir, mais amiúde, a consciência crítica e metalinguística diante da palavra.
Vejo em Lau Siqueira e em toda a trajetória de sua poesia, a que acompanho desde os primeiros passos, um construtivista por excelência. Um mais Cabral que Bandeira; um mais Drummond que Jorge de Lima; um mais Castro Pinto que Marcos Tavares.
Isto, me parece, confere unidade de forma, de tom e de perspectiva ao seu ato lírico, mesmo que, aqui e ali, derrape à sombra de elementos verbais, ora gratuitos no afã de experimentar os neutros recursos tipográficos advindos das ilusões concretistas, ora no excesso vocabular de certas incursões ditas barrocas ou neobarrocas.
O que considero relevante em sua poética, precisamente porque é o traço central que a define e a impulsiona, reside na noção do mínimo, quando penso exclusivamente na esfera da forma e no ângulo do estilo, ao mesmo tempo em que o motivo do silêncio e seus tópicos similares (ausência, falta, perda etc.), quando reflito acerca de sua dinâmica temática e de seu corpo ideativo. Um poema como “Carapuça” resume bem o quero dizer: “sair de mim∕não compreende∕represar a alma ∕∕ mas extorquir∕todas as vozes∕do silêncio’.
A esta tendência adiciono certo movimento conceitual, próprio dos construtivistas, para caracterizar, em regra, o verso de Lau Siqueira, em sua contida economia, a se fazer, sempre, dentro do geométrico limite, porém, sem fronteiras no que concerne aos sortilégios simbólicos que a linguagem pode trafegar.
“Senha”, p. 137, em seu único e decisivo verso já me diz tudo: “Ela tinha um rio de seda no abraço”. Em outra clave, quase aforismática, destaco “Plectro”, p. 139: “nada será mais denso que um ∕ pequeno pássaro pousado sobre ∕ as crinas da manhã”. O mesmo se aplica ao poema “Eixo”, com sua ingressão metalinguística, senão vejamos: “poesia é festa∕na floração das∕palavras ∕∕ risco e angústia∕diante do abismo ∕∕ serenata de risos∕soprando as nuvens∕espalhadas na deriva ∕∕ motivos da língua∕e da saliva”.
O erotismo, o cotidiano, os motivos metafísicos, a matéria poética, os bichos, o ínfimo, o miúdo, o quase imperceptível habitam a cartografia lírica desse curioso inventário, formulados tecnicamente por um idioma renovado e por um olhar poético que sabe preservar o hálito inaugural diante das coisas e das sensações. Elenco, aqui, uma série de textos que me soam antológicos, a exemplo de “Voyeur” (P. 21), “A formiga” (P. 22), “Poemas noturnos” (P. 44), “Croácia” (P. 48), “Por que escrevo poemas curtos?” (P. 56), “Chuva” (P. 88) e “Galo” (P. 94), que aqui transcrevo: “o silêncio∕com suas equações de estrelas ∕∕ abre os portais∕da madrugada ∕∕ sob os olhos atentos do infinito ∕∕ um quarto de lua∕empresta a partitura∕ao galo”.
Dizem que a poesia consiste numa insólita metafísica do instante. Dizem que o poema procura, no alcance da linguagem, captar esse instante mágico, esse naco de eternidade na clausura temporal e irredutível da palavra. Se é assim, e não duvido, pois também me dou ao páthos dessa luta toda vã, tenho a dizer que o poeta Lau Siqueira é um sólido, lúcido e corajoso poeta.
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OPINIÃO - 22/11/2024