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Magistrado, colaborador do Diário de Pernambuco, leitor semiótico, vivendo num mundo de discos, livros e livre pensar. E-mail: [email protected]

CATALEPSIA

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publicado em 28/12/2023 ás 07h00
atualizado em 27/12/2023 ás 17h18

Dos seus amigos nenhum esperava encontrar Anacleto naquele estado de letargia, semblante de uma sobriedade que inquietava. Sim, era ele mesmo, vivinho da silva, ou mais apropriado: mortinho da silva! Apagou quando voltava para casa, caindo durinho após mais um dia de esbórnia com os amigos de copo.

O caixão no centro da sala, em seu derredor a viúva Mazé com cara de viúva em dia de velório do marido; vizinhos e os amigos de bar. Todos ali para a despedida. Não era exatamente o tipo de reunião que  Anacleto gostaria de protagonizar, certamente sua preferência seria que ali todos estivessem bebendo e futricando a vida alheia, como era do seu feitio e da corriola que sempre o acompanhava no Bar de Emídio.

Aquilo estava muito parado para o gosto dos presentes. Cafezinho sequer fora servido, quando Leleco teve a ideia que corresse uma cachacinha aos presentes. E para que isso  fosse possível – com a anuência da viúva -, passou a arrecadar dez reais de cada pinguço presente e encarregou Bodega de ir comprar pinga e salame. Mazé quis até comparecer nessa cotinha, mas Leleco com ar compungido disse: “Não precisa, a senhora já entrou com o defunto”.

A bebedeira estendeu madrugada a dentro. A viúva para aplainar a tristeza, até arriscou uma lapada e incrementou o tira-gosto com caldinho de feijão. Todos falavam ao mesmo tempo; lembravam passagens pitorescas do amigo defunto; outros enalteciam seu caráter duvidoso. E até seu Emídio, num raro gesto de bondade, deu por liquidada a conta que tinha ficado fiado na última farra.

O sol começou a lançar seus raios pela janela da sala alcançando o ataúde, e somente dona Inez, vizinha beata que nada bebera, percebeu um movimento estranho no caixão. Se aproximou e viu o morto abrir os olhos  e descruzar as mãos, lançando as flores e o terço pelo chão da sala. Dona Inez faltou ar e caiu ali mesmo. Os amigos ao verem Anacleto se levantando, entoaram o grito de guerra: “Anacleto, junte-se aos bons!”

A farra continuou no Bar do Emídio, que a essa altura já se arrependera de ter perdoado o fiado.

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