João Pessoa, 03 de janeiro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Canção de dor de Augusto dos Anjos 

Comentários: 0
publicado em 03/01/2024 ás 07h00
atualizado em 02/01/2024 ás 21h34

Poeta,

andei com você

pelas várzeas do engenho.

Lia o Eu como se lesse

a descoberta de minha vida.

Sei

que muita cana moeu

a sua dor.

Sei

da tristeza que o povoou

nas noites insones

e estreladas.

O finado Toca o esperava

‘a sombra do crepúsculo,

a grama do rio copulava

com a luxúria dos charcos,

as vazantes  das margens;

os morcegos se esticavam

pelos labirintos dos telhados,

o eterno rio Paraíba era uma Ilha,

a Ilha de Cipango.

Vamos, poeta,

beber uma zinebra

naquele bar depois da Ponte

Buarque de Macedo,

assombrados com o magro

lirismo da lua, paralelepípedo

quebrado,

cismados com o destino,

certo de que todos somos

doentes.

Quero fazer de você,

meu poeta, meu pai

de verbo e infortúnio,

a minha pequena canção

de amor de  J. Alfred Prufrock,

passando pela terra

desolada,

num superior abandono.

Poeta,

beba, comigo, este conhaque,

e me declame o último soneto.

Diga a mim que viu,

como Elias, num carro azul

de glórias,

seu pai subindo aos céus,

e que Jesus Cristo, bêbado,

perdido, caminhava

pela Serra da Borborema,

exatamente como eu,

que, ainda hoje, bebo

e me perco no perfume

de seus versos.

Somos dois exilados!

Você  morreu

em terras serranas,

com a graça da neblina.

Eu, ainda,

estou por aqui,

entre feras e alumbramentos.

Se quiser ir a Sapé,

espiar a beleza de Zênia,

os abacaxis da pequenina vila,

seu mercado de esoterismos,

o melhor corrupião,

abrir a porta indecifrável

do brejo,

fale comigo, poeta.

Serei seu guia sob os adágios

do quarto minguante.

Amei muito por ali,

entre achados e perdidos.

Suas queixas noturnas

serão meus passos

nessa noite andarilha

e caprichosa.

Risco um fósforo

para alumiar nossa loucura.

Sei que há remigios

na flora de seus  poemas,

umidades cintilantes,

pecados mortais, a melhor

palavra.

E tudo me parece

atmosfera de milagre.

Augusto,

estamos agora no Bar

do Lipa.

Enquanto você me fala

de Comte e do Rig Veda,

de Darwin e Shopenhauer,

eu falo de Amália,

ou de Ismália, a que se atirou

no mar.

Alphonsus, claro,

não pode vir. Minas

é longe, Minas não há mais.

Cruz e Souza,

também não.

Mas, Lúcio se achega

por aqui,

com seu verso milimétrico,

o eco dos búzios,

o sal dos náufragos.

Vanildo vem do Cariri

só para olhar dentro

de suas imagens mutiladas.

Assunção o leu melhor

do que todos nós.

O poeta Irani,

seu desespero e seu sertão,

traz, no matulão da poesia,

como oferenda para irrigar

a paleontologia dos carvalhos.

A louca da casa

se senta conosco,

o cemitério marinho

libera seus fantasmas,

as catedrais se desmoronam,

a monera faz sua coreografia

nos espaços,

as águas lamentam a lágrima

da energia abandonada,

nenhuma grade aprisiona

o abstrato das saudades.

Eu, poeta,

que farei de mim?

Que verso ficará comigo,

quando pararem todos os relógios

de minha vida?

(Do livro inédito, No fim de todas as coisas).

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB