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No mundo pós moderno com o avanço da tecnologia e da ciência somos beneficiados com o progresso da medicina que pode, através de recursos científicos, substituir órgãos do ser humano que estão com defeitos ou doentes por outros sadios tirados de outro ser humano (doador), vivo ou morto, a uma pessoa viva (receptor) e que seja compatível com os dados biológicos do doador, a fim de restabelecer as funções de um órgão ou tecido mazelado. O doador vivo poderá doar órgãos como o rim, parte do fígado e da medula óssea e de tecidos.
A denominação dessa operação cirúrgica é chamada transplante. Uma mesma pessoa poderá doar vários órgãos e beneficiar muita gente o que para muitos indivíduos é a única esperança de vida que lhe resta.
Embora haja manifestação de vontade de ambas as partes, o reconhecimento dos familiares para assegurar efetivamente a vontade do doador há que se obedecer a protocolos estabelecidos e garantidos pela Lei n°9.434/1997, regulamentada pelo Decreto nº 9.175/ 2017, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamentos. Esta ferramenta legislativa oferece maior segurança aos envolvidos, tanto para o doador quanto para o receptor e para os serviços de transplantes. O Brasil é um país de referência mundial, ocupa a segunda posição entre os países que mais realizam transplantes, todavia há 34 mil brasileiros que aguardam por um transplante, tudo financiado pelo Sistema Único de Saúde. A Lei nº 11.584/2007 instituiu O DIA NACIONAL DA DOAÇÃO DE ORGÃOS, 27 de setembro, com o objetivo de promover a conscientização da sociedade sobre a importância da doação. O receptor ficará aguardando numa lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado que realiza os testes de compatibilidade entre doador e receptor, tudo controlado pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT).
Aspectos a considerar na doação de órgãos: de pessoas falecidas, somente após a confirmação do diagnóstico de morte encefálica; autorização da família para a doação, a função dos órgãos deve ser mantida artificialmente. De pessoas vivas: O doador deve ser considerado uma pessoa com boas condições de saúde, de acordo com avaliação médica e as normas legais para o procedimento.
Estas considerações foram feitas porque procurei entender melhor a questão de transplantes, pois sempre havia ouvido falar e nunca tive a oportunidade de vivenciar mais de perto a problemática. Numa de minhas idas à praia, como de costume fomos ao banho de mar e lá chegando armamos nossa sombrinha, para apreciarmos a paisagem e as crianças brincarem na areia, e de repente apareceu Luísa, minha amiga de longo tempo e que nunca mais havíamos nos encontrado, pois a mesma foi morar no exterior. Tinha uma casa perto da nossa. Hoje, casada com um grande empresário vive uma vida muito confortável. Sentamos juntas à beira mar, Luísa ainda é muito bonita e tem um corpo escultural. Ao ficar junto de mim eu olhei para o seu corpo e vi uma grande cicatriz. Levei um susto. Perguntei: “Luísa o que foi isso? Respondeu: “Fiz um transplante há dois anos”. E aí contou-me a sua história.
Luísa, é filha de pais separados desde que era criança. O pai deixou a casa e constituiu outra família, mas Luísa nunca foi muito de frequentar a família do pai que era grande, cheia de filhos e primos de primeiro e segundo graus. Conheciam-se, mas não tinham convivência. Um primo de segundo grau, casado, teve uma filha que nasceu com uma doença rara no fígado, que deveria submeter-se a transplante, todavia recém nascida não podia realizá-lo, só depois quando os órgãos amadurecessem. A família ficou muito apreensiva. A criança era muito querida e desejada e o seu pediatra havia prevenido que ela devia ser transplantada logo que o organismo estivesse apto para tal. Isto o mais cedo possível, porque quanto mais tempo passasse a situação seria mais difícil e a chance de sobrevivência era menor. Além do risco de vida, poderia ter sequelas graves, como ficar sem andar, perder a fala, entre outras. Diante da situação começou-se a investigar entres os parentes quem poderia ser o doador, a mãe não era compatível, o pai era, mas tinha diabetes desde a infância e não podia ser doador, a avó paterna também, mas com mais de 50 anos é contra indicada. Há pré-requisitos de que quanto mais nova a pessoa melhor para os procedimentos. A criança completou dois anos, o médico chamou a família e disse: agora está apta para fazer o transplante, que se procurassem primeiro entre os familiares e amigos para serem doadores. Encontrava-se na fila, que poderia demorar anos e sofrer as consequências da demora. Os familiares mobilizaram-se telefonando uns para os outros, foi quando a avó de Estefani telefonou para mãe de Luísa, Alice, que tinha sido casada com Weber contando a situação da criança, sua bisneta. Alice comoveu-se e colocou no grupo da família pedindo: “gente, uma prima, neta do pai de vocês, nasceu com uma doença rara e está precisando de que alguém se predispunha ser doador. Para isto, tem que primeiro fazer exame de sangue”. Os parentes concordaram em fazer o exame pensando que seria uma coisa bem simples. Todos fizeram, porém só dois mostraram-se compatíveis, Luísa e seu irmão mais novo.
Então os dois irmãos eram compatíveis e podiam ser os possíveis doadores. Submeteram-se à consulta médica, Luísa tem 37 anos e o mais novo 32. No rigor, quem deveria ser o doador era seu irmão, mas, durante os preparativos, na anamnese e outros exames, o médico observou que ele possuía uma tatuagem recente e isto era uma condição de impedimento. Luísa fez os exames cardiológicos e de laboratório e todos acusaram que se encontrava apta para ser a doadora. Até aí, Luísa não se dava conta da gravidade da situação, imaginava uma coisa simples. Foi quando teve contato com o primo, pai da criança, que até então não o conhecia, agradecendo-a pela disponibilidade de doar seu órgão para salvar sua filha, uma criança com muitas limitações e restrições. Contou o sofrimento e a trajetória para chegar até ali. Estava com essa esperança como uma última luz no fim do túnel. Mas disse-me Luísa: “Acho que são as coisas de Deus. Penso que estava sendo conduzida por ELE”.
Luísa teve o primeiro encontro com o cirurgião por um vídeo conferência realizada com os pais que residem no Rio Grande do Norte, Luísa e seu marido aqui em João Pessoa e o médico em São Paulo. Durante a conferência o médico explicou para Luísa, que se tratava de uma cirurgia de grande porte e se ela estava consciente do que ia acontecer. Haveria de usar um afastador e o corte seria grande, mexer com os órgãos para chegar até o fígado, quando nele retiraria um pedaço desse órgão. Para isto, o seu abdômen seria aberto afim de poder mexer com os órgãos e parte das costelas até chegar ao fígado. Sua estética abdominal seria modificada, disse que havia risco de vida e que ela poderia morrer na sala de cirurgia. Estes aspectos deveriam estar bem claros. Ela ia adentrar numa sala de cirurgia saudável para ajudar uma criança que estava precisando daquele órgão, mas que poderia todo esforço feito ser em vão, o órgão ser rejeitado etc. O médico disse que tinha que retratar a realidade para que tomasse consciência do que estava fazendo. Ela falou: “quando o médico disse tudo isto o meu esposo ao meu lado ficou branco. Tive um choque e meu esposo mais ainda em pensar na gravidade da situação de que eu estava disposta a enfrentar.” Depois o médico foi contar com detalhes a cirurgia da criança. Disse: “As quatro primeiras horas são determinantes para o resultado. É um momento crucial.”
Luísa, disse-me: “quando desliguei o computador meu esposo estava muito abalado. Falei: Victor vá trabalhar. Fique tranquilo que eu sinto a presença de Deus e que tudo vai dar certo. Mas quando ele saiu eu desabei num choro de uma meia hora. Nesse instante percebi que a ficha caiu e o que ia passar. Pensei nas minhas filhas que eram pequenas e ainda precisavam de mim. Uma força maior tomava parte de meu corpo e eu pensava…. Enxuguei as lágrimas e disse a mim mesma: bola pra frente.”
Antes de viajar fez uma série de exames e, quando prontos, seguiu para São Paulo uma semana antes da cirurgia e a primeira conversa foi com a assistente social do hospital de modo particular, e ela disse-me:” O contexto que gira em torno de nós é tudo para desistirmos e colocar empecilhos de sermos doadores. A assistente social falou: “Eu sei que você é parente embora distante da criança, sei que sabe dos riscos que corre, e a pressão familiar para que faça o transplante é grande, sei que tem filhos, esposo e não se sinta obrigada a fazer esta cirurgia. Eu estou aqui para lhe ajudar. Se for o caso, para que você não se indispunha com sua família e nem com a da criança, eu posso dizer que um dos seus exames não estava bem e você se livra de fazer. Se você quiser eu posso fazer isso para você.” Eu falei para ela: “Não, doutora, o problema não são eles pensarem sobre as minhas atitudes, sou eu comigo mesma. É a minha consciência. Sou eu com Deus. Se eu deixar de ter essa atitude e essa criança vier a morrer, eu saber que tinha chance de salvar sua vida e não o fiz, eu jamais voltarei atras da minha decisão. Eu quero, se depender de mim salvar a vida dessa criança. Eu estou decidida.”
Faltando dois dias para a cirurgia liga para ela o Comitê de ética. Luísa achou que foi a pior parte porque membros desse Comitê em seus diálogos foram grosseiros por que como há nessa área compra de órgãos e como ela se tratando de uma parenta distante davam a entender que investigavam se ela estava negociando o órgão o que parece que isso às vezes ocorre. O Comitê inqueria de forma contundente. Diziam: você tem filhos? Ela falou: Tenho três. Continuou: sabe que pode sair morta dessa sala de cirurgia e seus filhos ficarem órfãos? Você tem consciência disso? Do que você está se propondo a fazer? Estou decidida. Penso como este pai que se eu tivesse um dos meus filhos nessa situação? Do outro lado precisando de um doador? E ela determinada, mas os membros dizendo e amedrontando-a: Você sabe quantas pessoas morrem dentro de uma sala de cirurgia aqui no Brasil? fazendo este mesmo procedimento que você está se propondo a fazer? Está preparada para correr este risco? Então a todo tempo quarenta minutos no telefone foi instigada a desistir. E sentiu grosserias da comissão. Ela estava com a mãe, o marido e a filha então entregou o telefone a mãe caindo no choro pela grosseira e absurdo com a forma que a entrevista era realizada. Falaram para ela que essa atitude comportamental da comissão é padrão deles, muito pesada porque para ela é como se fossem todos contra ela fazer. Isto por conta de possível existência do tráfico de órgãos.
Chegado o dia da cirurgia dirigiu-se a sala e lá teve problemas pois é alérgica a vários remédios, como dipirona etc. O único remédio que podia tomar era tilenol e sendo uma cirurgia de grande porte, o médico ficou preocupado. Depois da cirurgia teria que usar morfina, mesmo antes foi bem tensa a preparação, os batimentos cardíacos aumentaram, mas enfim foi para sala de cirurgia. Luísa disse que todo o tempo sentiu a presença de Deus e por isso estava segura. Na ocasião o médico explicou que a primeira cirurgiada seria a doadora e seus órgãos retirados para fora do abdômen e depois a criança. Cada cirurgia duraria em média duas horas.
Ao começar os procedimentos o cirurgião se deparou com algo extremamente raro e inexplicável, a existência de duas válvulas quando o normal seria uma. Ele pensou: “esta cirurgia tem tudo para dar certo. Se a criança tinha uma chance de viver agora ela terá duas. Ele relatou que sentiu uma energia de Deus positiva e presente, quando estava fazendo o transplante na criança. Sentia que tudo correria sem intercorrências. A cirurgia que seria de duas horas para cada uma passou para quatro.” Este depoimento foi dado pelo cirurgião depois da cirurgia na conversa com os familiares. Durante a cirurgia o pai da criança vendo demorar foi lá na ante sala saber o que havia e foi explicado que estava tudo bem e dando certo, que ficasse tranquilo. Na hora não foi dito, mas a demora se deu por conta das duas válvulas. 24 horas após a cirurgia a recuperação foi um sucesso. Ela aceitou muito bem e correu às mil maravilhas. E depois de tudo, a vida segue longe uma da outra.
Em dezembro, Luísa com sua família foi convidada para as festas de natal na casa de Estefani. Ela compareceu e nos falou: “Quando vi Estefani uma criança saudável, correndo, fiquei muito emocionada e brotou um sentimento diferente. Bateu o instinto maternal, como ela fosse minha filha. Sinto-me muito feliz por ter podido realizar e ajudar Estefani a continuar viva. Eu me vejo nela. Foi um milagre. Deus deu-me a força e esteve sempre comigo, conduzindo-me e dando-me coragem.”
Este é um caso real bem perto de nós. Ao ouvir a história de Luísa e Estefani, constatei que o processo do transplante é complexo, e ao mesmo tempo detectei quanta gente está por trás e nos bastidores para que ele aconteça, além de verificar que ainda existem pessoas que se aproveitam da fragilidade da família e usam o momento para negociar, vender e lucrar. Como ocorreu com Luísa em que custaram a acreditar que não se tratava de tráfico de órgão, mas sim, do sentimento e ato de amor ao próximo predominante no seu coração. Uma história indubitável de despojamento humano na expressão mais verdadeira! Luísa tornou-se exemplo. A questão não é nascer, mas viver com qualidade de vida.
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP)
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TURISMO - 19/12/2024