João Pessoa, 26 de fevereiro de 2012 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O incêndio que destruiu a Estação Antártica Comandante Ferraz ameaça o futuro de um dos mais bem-sucedidos e estratégicos programas de pesquisa do Brasil. Longe de ser apenas uma gelada e selvagem terra de pinguins, a Antártica ocupa hoje lugar de destaque em discussões sobre o clima e as riquezas naturais do mundo. Antes colocado de lado nessas discussões, o Brasil ganhou voz no Tratado Antártico por conta da estação e havia se firmado nos últimos anos na primeira linha das pesquisas sobre a região. Especialistas estimam que os estudos na estação ficarão suspensos por pelo menos um ano.
— Fazemos ciência de ponta na Antártica. São estudos com implicações importantes sobre o clima no Brasil, recursos pesqueiros e biodiversidade — diz a bióloga da UFRJ Lúcia Siqueira Campos, integrante do Comitê Nacional de Pesquisas Antárticas, autora de dezenas de estudos sobre a Antártica.
Além da perda de equipamentos importantes e caros (um único aparelho perdido está avaliado em US$ 120 mil) e de todos os dados coletados na temporada de pesquisa de 2012 — que começou em dezembro e terminaria em março —, o incêndio deixa sem base fixa todas as dezenas de grupos de estudo com trabalhos na Antártica. Até a definição de como será a reconstrução da estação, as pesquisas estão, em sua maioria, paralisadas ou dependerão da colaboração de parceiros estrangeiros.
— Perdemos a base de apoio da ciência do Brasil na Antártica, é uma catástrofe para várias pesquisas — resume o diretor do Centro Polar e Climático da UFRGS, Jefferson Simões, um dos veteranos do Programa Antártico. — Estimo que de 35% a 40% dos trabalhos vão parar. Mas, é bom esclarecer, não todo o Programa Antártico.
O continente é fundamental para a regulação do clima e da circulação oceânica na América do Sul. É o grande refrigerador do mundo, que controla ciclos de vida e morte nos mares do mundo. A estação tinha uma importante linha de estudos de meteorologia. De lá, saiam dados importantes para a previsão de frentes frias no país, por exemplo.
— Nossas pesquisas têm impacto mundial, somos consultados nos grandes projetos. O incêndio é um baque para o programa antártico, pode interromper dezenas de estudos importantes e jogar fora anos de trabalho produzido com dinheiro público — observa a cientista.
A Antártica parece ser também especialmente vulnerável a mudanças climáticas, em especial a Península Antártica, onde fica a estação brasileira queimada. O Brasil também mantinha linhas de estudo importante sobre o tema. Uma delas investiga a retração das geleiras locais e seu impacto no clima global. Outra analisa a diminuição do gelo marinho na mesma região. Menos gelo significa menos krill, o minúsculo crustáceo do qual se alimentam as baleias azuis (os maiores animais da Terra) e uma multidão de outras espécies marinhas.
Entre outros estudos importantes está um trabalho sobre o impacto da radiação ultravioleta desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As regiões polares, devido ao buraco na camada de ozônio e por suas próprias condições geográficas, são especialmente vulneráveis à radiação solar ultravioleta. Porém, espécies de organismos antárticos resistem melhor aos efeitos nocivos dos raios UV. E são fonte em potencial para protetores solares mais eficientes. Também há pesquisas sobre substâncias anticongelantes encontradas em peixes e outros organismos que vivem na água gelada da Antártica.
— Elas podem ser usadas em medicina para conservar por mais tempo órgãos destinados a transplantes ou em cirurgias — diz Lúcia.
Do ponto de vista estratégico, a presença do Brasil na Antártica também é fundamental, analisam os especialistas. Somente quem tem estação e desenvolve pesquisas no continente tem direito a voto no Tratado Antártico — responsável por gerenciar toda a área do continente e do oceano austral, que correspondem a 10% da área total do planeta.
— Se o Brasil não tiver pesquisas lá, deixa de ter o direito de decidir o futuro de 10% do planeta em termos de pesquisa científica — resume Simões.
O Tratado Antártico proíbe ainda qualquer atividade de exploração mineral no continente até 2047, mas, depois disso, são os membros o acordo que decidem o que pode acontecer.
— Não acho que vá haver exploração, mas, se houver, será em regime de cooperação internacional — acredita o cientista político Eduardo Viola, da UNB. — A presença brasileira é importante porque todos os países significativos têm estações por lá. É um posicionamento em relação ao futuro do território global e um grande exemplo de sucesso da comunidade internacional em governança.
O Globo
OPINIÃO - 22/11/2024