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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Lirismo e geografia

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publicado em 14/02/2024 ás 07h00
atualizado em 13/02/2024 ás 19h07

 

Quero crer que não existe expressão poética sem o selo de uma geografia. Interior e subjetiva ou exterior e palpável, o solo singular dessa geografia dá sustentabilidade ao movimento das palavras.

Imaginem um Augusto dos Anjos sem a espessura verde e noturna da várzea do Paraíba, com seus roteiros visionários detidos pelo evangelho da podridão que lateja e brilha nos seus doidos e doídos decassílabos. Imaginem um Carlos Drummond de Andrade sem as batidas de ferro no seu coração itabirano. Imaginem um João Cabral de Melo Neto sem as pedras do Nordeste e de Espanha cimentando seus versos agudos e minerais. Imaginem um Manuel Bandeira sem as vastas abóbadas do beco e sem a mitografia onírica de Pasárgada. Haveria, sim, uma grande falta na constituição de suas respectivas poéticas individuais.

Trago esta breve e livre reflexão para dizer algumas palavras sobre o poeta Gilmar Leite Ferreira, a partir da leitura de Águas do Pajeú (Recife: Editora Coqueiro, 2022), sua coletânea de poemas mais recente.

Sua origem está lá nos vales sagrados do rio Pajeú, na urbe sertaneja de São José do Egito, seu “reino encantado”, berço privilegiado de poetas e cantadores; terra feita de sol, poeira e cinza; habitáculo da distância e dos azuis, sempre marcada pela voz do destino, quando o destino pode se converter na safra da melhor poesia.

É de suas entranhas geodésicas, de sua composição climática, de sua vária e complexa territorialidade, com sua fauna e flora características, suas criaturas, hábitos, bichos, mitos e crendices, que Gilmar Leite Ferreira, poeta à maneira dos bardos medievais, tece a cambraia multicor de sua poesia sertaneja, fundindo lirismo e geografia.

Indiferente aos vocativos experimentais das vertentes de vanguarda e aos decretos, tantas vezes autoritários, das escolas literárias de índole construtivista, seu ritmo e seu temário cedem mais aos imperativos da expressão imediata, que narra e descreve, à música interior dos sentimentos e das emoções face à oferta plural de bens e valores que a natureza concede, gratuita e espontaneamente, para regozijo do homem.

Seu verso atende sempre à cartilha da métrica tradicional, ao gosto das formas fixas e ao fluxo progressivo que dinamiza o jogo institucional das configurações retóricas. Se, por um lado, releva a herança erudita de românticos e parnasianos, por outro, não esconde as raízes orais e telúricas do cancioneiro popular, com suas quadras, décimas e sextilhas típicas dos legítimos repentistas.

A infância, o rio, a cidade, as cavalgadas, os brinquedos, os poetas, as árvores, o perfume, as águas, enfim, tudo o que perfaz a mitografia da paisagem e a bússola do tempo, sobretudo do tempo que já se foi, comparece como motivação essencial desta poesia graciosa, simples, fluida, natural e vívida como a luz do sol banhando as margens do Pajeú das Flores. Seu propósito expressivo se resume na doce ingenuidade de um texto como “Voo de passarinho”, sobretudo na pauta destes versos: “Bato as asas da poesia∕ No campo dos sentimentos,∕Sentindo a todo momento∕Um mundo de fantasia. {…} Sinto na alma as calmarias∕Dos ventos no campo vago,∕Que beija sereno o lago∕Com a água dos poemas,∕Onde lindas seriemas∕Tomam banhos de afago”.

Gilmar Leite Ferreira, na “Nota do Autor”, fala de seus mestres de letra e cadência, orgulhoso dessa família a que pertencem, entre outros, nomes, como Rogaciano Leite, Lourival Batista, Jó Patriota, Pinto do Monteiro e Zé Marcolino. Mestres com quem aprendeu, segundo revela, “os encantos, os mistérios, os segredos, as nuances simbólicas, a arquitetura linguística e o sensível que pautam o sentido de uma boa poesia, comprometida com a cultura local e com a força da terra sertaneja, com suas ambiguidades, aporias e paradoxos”.

Gilmar Leite Ferreira não quer nem ousa mais que isto. E isto não é pouco, se penso nos dias de brutalidade, narcisismo, niilismo, cinismo e banalidade do mal a corroer os valores humanos e a eliminar as utopias da civilização.

É preciso, pois, saber compreender a significação memorável desta dicção lírica, que, parece, cristalizou-se no tempo, mas quer, dentro de suas fronteiras formais e ao largo das metamorfoses estéticas do mundo contemporâneo, reter o veio original das fontes naturais, o lendário glorioso de uma região seca e sagrada, distante das luzes artificiais das grandes metrópoles e dos engenhosos laboratórios linguísticos e tecnológicos.

É verdade. Tudo passa. Mas de tudo fica um pouco, já o disse o poeta de Minas, num de seus poemas de A rosa do povo. A poesia é exatamente este pouco que fica, imperecível e preservado; este pouco que arde e perdura enquanto o coração não para. Águas do Pajeú, do poeta Gilmar Leite Ferreira pode testemunhar esta verdade.

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