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Kubitschek Pinheiro MaisPB
Foto em preto e branco do autor – Cris Nienkötter
Você conhece o diabo? Ele está no mundo todo. Da nova geração de escritores curitibanos, o escritor e jornalista João Lucas Dusi lança seu romance de estreia, O diabo na rua. O primeiro encontro entre autor e público, foi na Drummond Livraria da avenida Paulista, Conjunto Nacional, Consolação, com mediação de Felipe Damorim.
Em O diabo na rua, Pingo, o personagem fio da meada prende o leitor logo nas primeiras páginas. É sim, um personagem instigante.
Nessa jornada de autodestruição e autoconhecimento, repleta de referências à cultura pop e ambientada em uma Curitiba distante das baladas e holofotes, o protagonista se envolve com personagens como a prostituta transexual Melissa, fã de Shakespeare e Guimarães Rosa, e o traficante Teta.
O protagonista Pingo vai além de si mesmo – ganha um importante prêmio literário de Portugal e decide que é hora de abandonar as ilusões da sobriedade para abraçar, uma vez mais, o caos – onde se sente em casa, com o nariz cheio de pó e curiosas ideias de diversão. Um certo humor doentio, combinado com enxurradas de referências à cultura pop e à literatura, são as marcas mais fortes deste romance de estreia de João Lucas Dusi.
O texto de orelha, assinado pelo escritor Bruno Ribeiro, destaca Pingo como “uma voz que vem sento enterrada na literatura brasileira”. “Cada página virada é um pico”, escreve o autor de Porco de raça, vencedor do Prêmio Machado Darkside. O selo é da Editora Rua do Sabão
Em conversa com o MaisPB, o autor releva ainda mais seu conhecimento, e de cara, diz que o titulo do livro vem de Grande Sertão: veredas, de Guimarães e muito mais. Ele é autor de Grito da Borboleta, que reúne seus primeiros contos.
MaisPB – Quando eu era pequeno, no sertão, as pessoas falavam que tal criatura havia vendido sua alma ao demo. Isso a gente não vê em seu romance. O diabo está na rua literalmente, né?
João Lucas Dusi – O aceno do título do meu romance é para o clássico Grande sertão: veredas, do Guimarães Rosa, especificamente ao “mantra” do Riobaldo: “O diabo na rua, no meio do redemunho”. É um romance que expandiu minha maneira de encarar a ficção – quando se depara com tamanha maestria, difícil ficar indiferente. É até por isso, acho, que se trata de um livro (o do Guimarães) que funciona naquela chave “ame ou odeie”. Há vários tipos: os que não conseguem avançar na leitura, os que cultuam a obra e, claro, os que mentem que leram em nome de uma postura supostamente intelectual.
MaisPB – É verdade, muita gente diz que leu o Rosa, sendo mentira…
João Lucas Dusi – Para além do papo-furado, o meu diabo – o Pingo, protagonista – está na rua, sim: nas vielas de uma Curitiba pouco conhecida, a das biqueiras e da violência pulsante. É um pouco diferente daquela cidade que ganha prêmios internacionais por mobilidade, por mais que o transporte público seja uma merda e esteja sempre lotado. É somente por meio da literatura urbana, acho, que é possível explorar as múltiplas facetas da ficção: faz-se não só da cidade um personagem como se abre brechas orgânicas para trabalhar questões internas do personagem interagindo com um ambiente horrendo. O pacote completo, basicamente, sempre apontando para a podridão generalizada – quando não há podridão de fato, fica a cargo da visão pessimista do personagem, ou de sua mente em constante derretimento devido aos abusos de substâncias e da depressão rascante, criar os piores cenários possíveis. Não dá para tirar existencialismo de história feliz, afinal, e acredito piamente que um estado de espírito ameno faz com que a gente acabe esquecendo da vida como ela é – um caos do caralho, totalmente despropositada e, essencialmente, uma causa perdida. Somente por meio de situações-limite, como as vividas por Pingo no meio urbano (na rua), se alcança reflexões pungentes – e até alguma esperança, quem sabe, contrariando a mim mesmo? A escolha por um diabo literalmente na rua é tanto estética quanto filosófica.
MaisPB – Curitiba é celeiro de grandes escritores, como Paulo Leminski, Dalton Trevisan e Carlos Machado. Agora, você – um jovem – que joga o diabo na cara da gente?
João Lucas Dusi – O Leminski, tenho impressão, só veio a conquistar um nome realmente forte depois de morto, quando daquela exposição itinerante pela qual os herdeiros ganharam um trocado. E devido à edição de sua obra completa pela Companhia das Letras, claro, um conglomerado capaz de fazer qualquer um se tornar gigantesco – só ver o caso do Geovani Martins, que esteve no Programa do Bial antes mesmo de alguém ter chance de terminar seu primeiro livro. E beleza: é assim que a banda toca. É um jogo brutal, o das letras, nada diferente do que acontece em qualquer outro business. Enquanto estava morrendo de tanto tomar pinga, vivo aqui nesta Curitiba do caralho, ninguém dava uma pala pro Polaco. O que quero dizer com isso é que, de modo geral, esse tipo de comparação – a nível pessoal – jamais será frutífero. Existe toda uma máquina funcionando no mundo literário, uma máquina predatória pra caralho, e coroados são os que conseguem um espacinho na engrenagem. Agora, tratando-se de ficção pura e simples, a Curitiba que o Dalton cravou no imaginário popular é realmente coisa de louco. Não posso dizer com certeza se ele foi o primeiro a expor a capital paranaense de maneira bem diferente daquela pintada para inglês ver, mas a dele é a que sai das páginas. Agora, com o meu Diabo, quis apresentar o funcionamento dessa Curitiba profunda por meio de uma chave mais contemporânea, com elementos mais frescos e identificáveis pelas pessoas que, assim como eu (o autor), vivem essa cidade menos idílica. E há, claro, a questão da linguagem: o Trevisan, maestro da composição, é um modelo a ser seguido – e, com alguma arrogância, superado. Acho bem difícil que alguém venha a ter a mesma relevância que ele conquistou. Quem sabe daqui 50 anos? Quanto ao Carlos, é também um praticante da literatura urbana e é bem interessante que siga produzindo assiduamente, sendo um nome constante no radar. Ele leu o Diabo, inclusive, e gostou muito.
MaisPB – Interessantíssimo, o personagem Pingo: pornográfico, voraz. E poderia ele mesmo ser o diabo, né?
João Lucas Dusi – Encarar meu protagonista como uma espécie de demônio é acertado: ele é uma coisa multifacetada, tipo um anjo caído mesmo, encharcado de vaidade e toda sorte de sentimentos ruins. Mas é, também, um sujeito carente à procura de redenção. Alguém que quer desesperadamente a atenção do pai, o que dá a ele uma aura de Lúcifer – um rebelde triste. Na falta da redenção, Pingo mergulha em um estilo de vida autodestrutivo. Não é exatamente uma composição inédita, mas acredito que a maneira de narrar a história tenha um apelo significativo. Quando se trata de literatura, a potência da linguagem é essencial. A partir dela, da combinação esmerada de palavras, dá para contar uma história sobre nada e fazê-la soar incrível. Ou uma história clichê, como a minha, com fôlego renovado. O Samuel Beckett está (esteve?) aí para provar esse ponto, é ou não é? Não sei se consegui, mas foi o objetivo.
MaisPB – Legal a descoberta de que Miles Davis não tinha amigos, pelo narrador, num sei, talvez, mas anunciado logo no primeiro capítulo?
João Lucas Dusi Alguém responsável por um álbum tão forte quanto “Kind of blue” só pode ser solitário – sempre cercado de pessoas, claro, mas intimamente só. No meu livro, a informação serve para dar uma chave de leitura a respeito do personagem: é alguém que está sempre em busca da maestria e corre na contramão do convencional, coisa que o Miles fez. Ou, no caso do Pingo, tenta desesperadamente correr do convencional, mas dá de cara com a parede. Gosto de pensá-lo como uma figura meio patética, o Pingo, coisa que o Miles obviamente não foi. É um recurso, enfim, em nome da construção do protagonista. Busca-se, desde o início, dar indícios de como o personagem encara as coisas – de forma megalômana, raivosa, teatral. Serve, também, para alimentar uma recorrência encontrada no livro todo: referências à cultura pop. Acho que, ao pôr nomes e situações reais na ficção, cria-se um universo palpável, mais próximo do leitor, com uma mensagem bastante direta.
MaisPB – Eu gosto muito de Pingo, porque a literatura matou esse tipo de personagem, mas ele volta, porque através dele o escritor escracha o leitor, né?
João Lucas Dusi -A voz do Pingo é curiosa: além de funcionar de maneira mais clássica, contando uma história em primeira pessoa, ora ela se distancia de seu próprio ponto de vista para se transformar em uma espécie de narrador convencional, informativa em terceira pessoa, sem abrir mão de seu protagonismo – é de uma megalomania atroz! Nos arroubos histéricos do Pingo, tem-se ataques aos leitores, aos escritores e à sociedade em geral. É tanto uma maneira de construir o personagem, ele próprio um escritor, quanto de tornar a leitura dinâmica – aquela coisa de interagir com o público (de forma indireta, orgânica). Eu, enquanto autor do Pingo, nem concordo com muita coisa que ele diz. (Será que não?) Mas o Pingo também é um ficcionista, então fazer o quê? Tem todo um lance teatral envolvido. É meio como a “arte do exagero”, do Thomas Bernhard, como gosto de me referir ao discurso exageradamente histérico dos narradores do escritor austríaco. Basicamente, Pingo tomou meu livro de assalto e falou um caminhão de merda.
MaisPB – O prêmio valioso em Portugal faz com que Pingo volte no tempo e jogue o diploma no monturo, no cu mesmo, e quem sabe chegue mais junto de Maria, a ex, ou se divirta intensamente com Melissa. Mas Melissa nem é nome de personagem, concorda?
João Lucas Dusi – A validação por meio de um importante prêmio faz com que Pingo mostre suas asinhas: se é que antes ele funcionava numa chave mais underground, fingindo ser o loucão disruptivo, levantar o caneco mostra as reais intenções do carinha: choramingar por causa de uma ex, a Maria – e, no mesmo embalo, revisitar seus traumas de vida toda. Quanto à Melissa: sim, é nome de sapato de mulher. E foi daí mesmo que tirei, aliás, por motivos escusos. O que ela é, ou que ela representa, vai depender muito da interpretação do leitor. Existe, sim, uma proposta bem sólida da minha parte enquanto autor: eu sei o que ela deve ser e o que representa. Se alcancei isso, se consegui transmitir a ideia de maneira satisfatória, não sei. Vai de cada um. Acho que não posso me estender muito sobre a Melissa sem estragar a surpresa de um eventual leitor.
MaisPB – O diabo na rua é bom e denso, mas muito popularesco, apesar da linguagem moderna, que vem dos anos 80. Estou certo?
João Lucas Dusi – Correto. Dos retornos que recebi a respeito do Diabo, aliás, os que mais me agradaram foram de pessoas não habituadas à leitura – minha mãe, por exemplo, ou um parente distante que era da Rone, uma polícia barra-pesada aqui de Curitiba, que achou o livro um baita ataque aos bons costumes da família tradicional brasileira, mas terminou a leitura em poucos dias. Busquei um ritmo palatável, com uma levada alucinante, para que a leitura fosse dinâmica, agradável – por mais que, em se tratando de conteúdo, densa e francamente repugnante. O Pingo está sempre fazendo piadas tragicômicas para escamotear suas sensações verdadeiras, tristes, o que dá ao livro uma falsa sensação de leveza. Nesse sentido todo, acho que você está bem certo e fico feliz que tenha percebido a obra dessa maneira.
MaisPB– Legal essa coisa de que o personagem nunca gostou da dra. Cannabis, “coisa de retardado”, mas você acha que Pingo nunca fumou um baseadinho?
João Lucas Dusi – Ele deve ter fumado sete bilhões de baseados, claro. Mas, uma vez mais, a crítica à maconha – “coisa de retardado”, como ele diz no livro – vem de um discurso disruptivo que precisa ser praticado pelo personagem teatral Pingo, aquele que se apega à arte do exagero. Em um momento em que a cannabis ganha mais espaço na sociedade, não só de forma recreativa como medicinal, ele precisa ser o diferentão: fazer não só um comentário ameno a respeito da coisa, mas escandaloso. É sua marca registrada.
MaisPB – Eu sempre gostei mais de Camus do que de Sartre, mas no livro o personagem comprou um peixe estrangeiro e cuspiu na postura midiática de Sartre.
João Lucas Dusi – Justamente: Pingo compra o peixe do Camus, isto é, gosta mais dele. E cospe no midiático Sartre. Esse lance todo é uma maneira de demonstrar como a revolta do personagem tem mais a ver com a do franco-argelino, que pregava a rebelião como um combustível contra o absurdo de existir, do que com a náusea sartreana – aquela que te paralisa diante da falta de sentido da vida. Ao me referir ao filósofo francês, penso no personagem Roquentin, e não em sua obra filosófica – que eu não li. Do Camus, sim, li uma cacetada de títulos – da filosofia à ficção, sem até hoje saber se gosto mais de uma ou da outra pegada.
MaisPB – Eu achei que você e o diabo, iriam matar Pingo. Mas ele chega ao final, numa boa?
João Lucas Dusi -Assim como em relação à Melissa, o final do Pingo é incerto. Uma vez mais, enquanto autor tenho uma proposta bem sólida e sei o que aconteceu. Mas a graça do livro, acho, é justamente deixar essas aberturas. A sutileza, na composição literária, é essencial. Sutileza em relação aos detalhes centrais da trama, claro, e não ao discurso. O discurso precisa ser uma tijolada na sua cara. Deixo em aberto, então, o final do Pingo. O leitor pode pensar o que quiser, e é legal que assim seja: torna a obra única para cada um.
MaisPB – Fala alguma coisa aí do Grito da Borboleta?
João Lucas Dusi – É um livro de contos. Meu primeiro. Acho que, no Diabo, consegui resolver os erros que cometi no Grito, principalmente os relacionados à composição. No meu de estreia, de 2019, exagerei no hermetismo. É quase uma punhetona pra mostrar como o autor é intelectual, cheio de obscurantismo e de ritmo pífio, truncado. Acho que é o melhor que eu pude fazer naquele momento e, sinceramente, ainda gosto muito do livro. São fases do autor: naquele momento, me contentei com a levada mais cabeçuda, coisa que deixou de fazer sentido quando do escrito d’O diabo na rua. Uma coisa curiosa é que o Grito já trazia uma estrutura de romance. Apesar de ser um conjunto de contos, há uma linha narrativa sólida e uma história fechada. Mesmo assim, acredito que é possível ler cada uma delas de forma independente. Foi o objetivo, pelo menos. Dá para pensar, então, que meu primeiro livro foi quase um ensaio para o que viria a se tornar o Diabo – que é, acredito, de longe minha melhor realização até agora. Já estava tudo lá: as referências, a violência, as drogas, o suicídio, o fatalismo, a teatralidade. Só acho que, no Grito, eu não tenha conseguido amarrar tudo isso de maneira satisfatória para alcançar um bom tanto de leitores. Ficou um troço mais obscuro, fechadão. Mas tá lá. Daqui uns anos, quem sabe, eu venha a falar um monte de merda sobre O diabo na rua. E assim a gente vai indo.
TURISMO - 19/12/2024