João Pessoa, 21 de fevereiro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Mais três dias neutros nas Enseadas do Sol, na praia de Fagundes, onde, vez e outra, atendo aos reclamos e aos devaneios do silêncio e do repouso. Também aos apelos de uma região íntima e inefável a que denomino de leitura. Essa geografia que me marca, com sua paisagem e clima variados e sublimes, o organismo cotidiano que me faz e me modela diante do mundo.
Não sou muito de mar. Sou mais de agreste, de cariris distantes, das bravuras do semiárido, do ar devastado das campinas de minha terra, com suas pedras míticas seus marmeleiros dilacerados, seus ventos anônimos, suas nuvens inumeráveis.
O mar, no entanto, também me tem. E não só esse mar, de água e sal, cantado em tom maior pelas vozes de Luís Vaz de Camões e de Fernando Pessoa, a ressoarem, na minha alma, como os minuetos de búzios ancestrais. Mas esse outro mar, cujas ondas se quebram na areia das páginas dos livros que amo, e sem os quais não me movo nem respiro.
Para fazer mais essa travessia por dentro de mim mesmo, como que enxotado do barulho nervoso da cidade, trouxe, no barco ou no matulão, não sei, peças de fantasia as mais diversas, para distrair o tédio e a melancolia. Nunca sei ficar com um livro só. Muito menos com um gênero só. Com um assunto só, com uma ideia só. Só, de fato, com a mesma emoção e o mesmo entusiasmo.
Como estou no mar, mirando da praia os mistérios do espaço e do tempo, leio um pouco Maria de cada porto, romance de Moacyr C. Lopes, em que o mar, principalmente o mar, se é ambiente dominante, como em Moby Dick, de Herman Melville, por exemplo, é também o personagem principal, apesar da trajetória dos seres humanos que se movimentam na aventura das viagens. Wilson Martins, como José Veríssimo, por excelência, um crítico adversativo, louva este romance como um romance de indiscutíveis qualidades humanas e estéticas
Tenho à mão dois poetas brasileiros contemporâneos e leio seus poemas alternadamente, obedecendo apenas ao prazer das escolhas casuais. São eles André Carneiro, em Pássaros florescem, e Gastão de Holanda, em O atlas do quarto.
André Carneiro explora uma atmosfera surrealista em poemas de forte impacto sensual e imagético, nos ofertando pepitas de ouro como estas:
“Peixes fazem amor ∕ no motel transparente ∕ das águas. ∕ Abelhas trouxeram mel ∕ à sobremesa, ∕ mulheres se despiram ∕ com lentidão ∕ para os insetos. {…} Um lagarto ∕ inventou um mundo”.
Gastão de Holanda também trabalha imagens radicais, e, no poema intitulado “Bodas de mármore”, põe estes versos na voz do eu lírico:
“A estátua que contempla as crianças ao largo ∕ lamenta não ter filhos de carne, ∕ pombas modulam o amor no duro lençol dos seus ombros ∕ e lhe sugerem a mobilidade dos pássaros”.
A meditação filosófica me acompanha no ensaísmo aforismático de Alain Botton e de E. M. Cioran. Se aquele consegue fazer de sua inteligência um exemplo vivo de ludismo e lucidez face a temas da doce banalidade, este se rasga e se dilacera, por meio de um estilo iluminado e poético, na criação de seus silogismos e paradoxos de desespero e amargura. Ler um é acalmar-se no céu das palavras; ler o outro é atravessar a estranha volúpia dos infernos.
Crônicas de Ruy Castro, contos do chileno Roberto Bolano e algumas dicas didáticas para estimular a criatividade e superar os bloqueios, extraídas de A guerra da arte, de Steven Pressfield, completam essa pausa que me dei para espiar o mar. Sempre, no entanto, com saudade da terra. Da minha terra, árida, áspera e bela!
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OPINIÃO - 22/11/2024