João Pessoa, 13 de março de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Todo poema é de circunstância, dizia Goethe (foto) . Não importa se esta circunstância envolva sentimentos individuais, assuntos coletivos, fatos quaisquer do cotidiano, lembranças, perspectivas, tragédias, espetáculos etc.
Até mesmo as armadilhas e os quebra-cabeças do experimentalismo vocabular podem constituir a circunstância pata o cometimento de um poema. As palavras se prestam a tudo!
Sem dúvida, o gênio alemão tem toda razão, e seu pensamento me parece incontestável. E o fato de o poema ser circunstancial em nada o diminui.
Só que não é somente a circunstância que faz o poema. Óbvio, todos os ingredientes possíveis da vida e suas circunstâncias, do “eu e minhas circunstância’, para a frase de lembrar Ortega Y Gasset, habitam a casa do poema, em todos os seus cômodos e mobília. Sobretudo se a luz incandescente da poesia macula a diversa matéria de que são feitos.
Penso na poesia que palpita, por exemplo, solerte e escondida, no silêncio da sala, na ausência que se senta na cadeira de balanço, naquele retrato em sépia de meu velho avô, que se foi não sei para onde, na sombra do abacateiro do quintal, na paz e na guerra que os livros exercitam enfileirados nas estantes em meio à solidão da biblioteca.
Certa feita escrevi um poema (está lá no Exílio dos dias), como se fosse uma casa, com seus arredores e interiores, seus corredores e cubículos, seus alpendres, pilares, assoalho e cancelas. Casa em que o repasto do vazio e a verdade da beleza, fundidos ao sortilégio da recordação, cadenciava os passos solenes de cada verso e a edificação plural de cada estrofe.
Dizia, sim, não é só a circunstância que faz o poema, mesmo que todo poema seja circunstancial, como o autor do Fausto reconhece. Com discernimento e sabedoria.
É preciso que a emoção subjetiva que o sustém, com todo o seu páthos, força, realidade e implicações, se converta em emoção estética, isto é, numa experiência que ultrapasse as fronteiras da singularidade e alcance conotações universais.
Para tanto, creio que seja indispensável sondar as virtualidades da linguagem, procurando juntar as palavras a partir de uma lógica que transgrida os reduzidos caminhos da razão. Dito de outra forma, transfigurar…
Quando Dante escreve sobre o inferno; quando Baudelaire escreve sobre o albatroz; quando Blake escreve sobre o tigre; quando Pessoa escreve sobre Lisboa; quando Rilke escreve sobre a pantera; quando Borges escreve sobre os labirintos; quando Bandeira escreve sobre o beco, a glória, a estrela; Drummond, sobre o retrato na parede, Augusto, sobre o tamarindo, e Jorge e Lima, sobre a garupa da vaca, que “era palustre e bela”, estão simplesmente transfigurando… Transformando a coisa real de fora em coisa estética de dentro.
Quero crer que transfigurar seja algo mais que representar. As palavras, ali, não cumprem apenas o papel de evocar as coisas, os fenômenos, as circunstâncias. Tocam diretamente na sua alma, na essência misteriosa de que são forjados em sua realidade ontológica e singular.
As palavras, ali, não servem apenas para nomear as coisas. São como que as próprias coisas, em sua unicidade, em sua linguagem primordial e intransferível. Talvez por isto, E. E. Cummings considerasse o poema como aquilo “que não pode ser traduzir”. O que é dito ali, só ali é dito. Na forma e no conteúdo. Circunstância irrepetível: do verbo e da vida.
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OPINIÃO - 22/11/2024