João Pessoa, 12 de fevereiro de 2012 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Quando a estudante nova-iorquina Samantha Garvey, de 18 anos, foi selecionada para a semifinal do concurso Intel de ciência, no mês passado, a revelação mais surpreendente não foi o tema de sua pesquisa em biologia marinha, mas o fato de a estudante e a família estarem vivendo em um abrigo para sem-teto. Samantha, que ganhou fama nacional em programas de TV e na semana passada foi recebida pelo presidente Barack Obama durante uma feira de ciências na Casa Branca, passou a ser o rosto público de um contingente cada vez mais numeroso de jovens e crianças, filhos de pais trabalhadores, que viraram homeless devido à crise.
Samantha não chegou à fase final do concurso, mas embolsou US$ 50 mil de uma bolsa de estudos da AT&T quando visitou o programa da apresentadora de TV Ellen DeGeneres.
— É realmente assustador. É a pior sensação do mundo, como se sua família estivesse sendo despedaçada, jogada na rua, mas ninguém se importa — contou Samantha no “Ellen DeGeneres Show”.
O pai da estudante é motorista de táxi, e a mãe, funcionária de um hospital. Eles sofreram um acidente de carro no ano passado e ficaram temporariamente impossibilitados de trabalhar, o que os levou a atrasar contas e pagamento de aluguel, provocando o despejo. Até receber, há poucos dias, acesso a um apartamento com aluguel subsidiado pelo condado de Suffolk, na região de Long Island, a família, que tem mais dois filhos, ficou em um abrigo. Samantha, aluna exemplar na escola pública Brentwood, onde cursa o último ano do Ensino Médio, se dedicou ainda mais aos estudos.
— A ciência sempre foi muito importante para mim, e, nessa situação, me ajudou a botar o foco em outro lugar. Se eu continuar a fazer o que amo, terei um bom emprego e poderei um dia comprar uma casa para os meus pais — disse.
A professora Karen Feil, orientadora de Samantha, diz que a estudante é uma apaixonada pela ciência e “incrivelmente batalhadora”:
— Ela sempre teve muito apoio dos pais. Mas a história deles mostra como, nesse ambiente de crise, uma família de trabalhadores pode escorregar para o precipício.
Turnos para dormir e estigma da pobreza
Especialistas confirmam a impressão de que, após a crise econômica de 2008, aumentou o número de americanos vulneráveis a uma situação como a vivida pela família de Samantha.
— Os abrigos para sem-teto estão cheios de famílias de trabalhadores, algo que nunca tínhamos visto — diz Ralph da Costa Núñez, diretor do ICPH (Institute for Children, Poverty and Homelessness), um dos principais centros de estudos que trabalham com as questões da pobreza em Nova York.
Alguns deixam o abrigo e vão para a escola ou o trabalho pela manhã, outros têm bons sapatos e usam smartphones. Para Joel Blau, autor do livro “The visible poor: Homeless in the USA” (A pobreza visível: Sem-teto nos EUA, em tradução livre), o problema está ganhando contornos dramáticos.
— Um número extraordinário de americanos está a apenas uma catástrofe de distância de se tornar sem-teto ou oficialmente pobre — diz Blau.
A história de sucesso de Samantha revelou outra faceta do problema: o estigma. O irmão da jovem parou de falar com ela, depois de recriminar o fato de ela ter “contado para todo o mundo” que a família estava desabrigada.
O número de pessoas vivendo em abrigos atingiu o maior patamar da história na cidade de Nova York: em outubro de 2011, 41,2 mil pessoas viviam nos abrigos. Atualmente, cerca de 75% desses moradores são famílias, incluindo 17 mil crianças e adolescentes, e a grande maioria quer evitar ser identificado com um símbolo tão forte da pobreza absoluta.
Para tentar manter uma vida “normal”, as famílias vagam durante horas pelo sistema de transporte público. Na semana passada, o “New York Times” relatou o caso de Tonya Lewis, moradora de um abrigo no Queens que gasta quatro horas em seis viagens de metrô e três de ônibus para levar os filhos à escola e chegar ao trabalho. A prefeitura tenta alocar os abrigados perto do trabalho ou da escola, mas nem sempre isso é possível.
Nos EUA, pais que levam crianças para morar na rua perdem a guarda dos filhos. Por isso, viver na rua, mesmo no verão, não é uma alternativa para as famílias. A primeira opção, em geral, é se “empilhar” em apartamentos com uma ou duas famílias.
— Eles fazem turnos para dormir. É um fenômeno muito comum nas comunidades pobres. A única razão para o número de pessoas nos abrigos ser 40 mil é que esta é a capacidade. Se ela aumentasse, o número poderia dobrar rapidamente — diz Núñez.
Sem uma expansão do número de vagas, o problema pode se agravar rapidamente nas próximas semanas. A Prefeitura de Nova York encerrou um programa que pagava subsídio mensal de US$ 900 por família, em média. Cerca de 10 mil famílias eram beneficiadas, a um custo anual de US$ 140 milhões. No ano passado, o governador Andrew Cuomo cortou os repasses estaduais de US$ 65 milhões, e com isso, a prefeitura perdeu também a contrapartida do governo federal, de US$ 27 milhões, o que tornou, segundo a prefeitura, impossível para a cidade de Nova York bancar o programa.
A entidade de assistência legal sem fins lucrativos Legal Aid Society entrou na Justiça para forçar a prefeitura a continuar garantindo os pagamentos, mas a medida liminar foi derrubada no último dia 2. O prefeito Michael Bloomberg anunciou que o aluguel de fevereiro não será pago. ONGs estão em atividade febril para evitar a onda de despejos.
— É uma situação perigosa para as famílias, com o risco de despejo em pleno inverno e os albergues já superlotados. Estamos correndo contra o tempo para evitar uma catástrofe — diz Patrick Markee, porta-voz da ONG Coalition for the Homeless.
O advogado Daniel Anisfield, da Manhattan Legal Services, uma firma sem fins lucrativos que defende os direitos de pessoas sem recursos, diz que o escritório está recebendo uma avalanche de pedidos, e tem tido que recusar até casos em que há chance de vitória.
— É muito duro ter que rejeitar essas pessoas, mas também sofremos grandes cortes na ajuda financeira que recebemos do estado e do governo federal e simplesmente não temos gente suficiente — diz Anisfield.
O problema dos sem-teto em Nova York começou com a chamada desinstitucionalização dos doentes mentais nos anos 50, e foi reforçado por dependentes de drogas, alcoólatras, veteranos de guerra com problemas mentais. A mudança na forma de ocupação das cidades também foi fundamental.
— Quando as cidades ainda eram zonas industriais, a classe média foi para os subúrbios, em busca de qualidade de vida. Mas, a partir dos anos 70, quando passaram a se voltar para serviços e tecnologia, houve uma revalorização dos imóveis no centro — explica Blau.
Em Nova York, o fenômeno de renovação de áreas degradadas expulsou os pobres do Lower East Side de Manhattan, que era o ponto de chegada dos imigrantes no início do século XX, e até de trechos do Harlem.
Núñez, que trabalha com o tema desde os anos 80, com o então prefeito Ed Koch, conta:
— Todos os prefeitos de Nova York que conheci me pediram “Faça esse problema desaparecer”. Mas é impossível, ele é parte da paisagem urbana do país. Ninguém mais constrói habitação para baixa renda, não é lucrativo.
Para o diretor do ICHP, autor do best-seller “A shelter is not a home…or is it?” (Um abrigo não é um lar… ou é?, em tradução livre) é necessário assumir a realidade e transformar os abrigos em centros comunitários, com escolas, centros de formação e reciclagem de mão de obra.
O prefeito Bloomberg prometeu, em 2004, reduzir pela metade a população de sem-teto na cidade, mas o número só faz aumentar. O homem encarregado por Bloomberg da questão, Seth Diamond, discorda da proposta do ICHP de transformar abrigos em moradia permanente, e afirma que as pessoas “não devem ficar em abrigos nem um dia além do necessário”.
— O problema é que 47% delas acabam retornando. O problema não é só de habitação —pondera Núñez. — Enquanto não tivermos uma política ampla de combate à pobreza, isso não vai ser resolvido.
O Globo
OPINIÃO - 22/11/2024