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ENTREVISTA ESPECIAL

Jornalista Helena Vieira lança livro documental sobre escravidão brasileira

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publicado em 13/04/2024 ás 12h48
atualizado em 13/04/2024 ás 19h30

Kubitschek Pinheiro – MaisPB

Fotos: Renato Parada

Um texto escrito por Joaquim Nabuco, no livro “Minha formação” lançado no final do século XIX, lembra que a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil, Caetano Veloso musicou- a frase emblemática é de uma década depois de abolida a escravidão (13 de maio de 1888), em nosso país. Ou seja, continua.

A escritora e jornalista Helena Vieira traz o tema à tona ao lançar “Jussiape, a cidade onde nada acontecia” com selo da Folhas da Relva.

Ela é baiana – e vai no ponto mais cruel desses 200 anos da escravidão, com a história pessoal de seis gerações da família de imigrantes portugueses. Minuciosa, ela ultrapassa as fronteiras num ensaio denso, rico de informações, descobertas emotivas, o retrato da mão-de-obra escrava por seus ancestrais, no alto sertão da Bahia  – comprovada por documentos e histórias reais. O livro não é ficção e deveria virar um filme.

A escritora Helena não foi em busca do tempo perdido, claro que não, ela foi busca entender o seu pai, um católico fundamentalista, ultraconservador, ex-seminarista, que casou e tiveram uma recua nove filhos.

Uma década de pesquisa focada em documentos no Arquivo Público do Estado da Bahia e muitos relatos coletados com moradores – alguns quase centenários – de cidades que são a memória viva de uma importante parte da história do Brasil.

Em entrevista para o MaisPB, Helena rasga o verbo e conta tudo, mais que isso, uma jornalista e escritora emocionada. Leiam a entrevista e o livro “Jussiape, a cidade onde nada acontecia” que é uma realidade cruel da escravidão, ontem., hoje e sempre.

Quem é Helena

Helena Vieira é jornalista soteropolitana. Seu namoro com a escrita vem de longa data. Fez seu primeiro “livro” quando tinha sete anos. Eram poesias que escreveu num caderno para logo depois picotar tudo, envergonhada.  Estudou jornalismo, sonhando em ser correspondente internacional e viajar o mundo contando histórias. Antes de se estabelecer em Londres, morou em Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Foi repórter das TVs Aratu e Bahia, em Salvador, da editoria de política do Estado de S. Paulo na capital paulista, freelancer em Nova York para o Jornal O Globo e Rádio CBN, e trabalhou na edição brasileira do The Wall Street Journal e na Bloomberg TV Brasil. Por um ano foi assessora de imprensa da School of St Jude, uma ONG australiana na Tanzânia. Há oito anos edita o LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science, em Londres.

MaisPB  – Você disse que escreveu o livro emocionada, com o coração na mão e lágrimas nos olhos – vamos começar por aqui, por essa descoberta cruel?

Helena Vieira  – A parte mais cruel foi quando descobri que meu trisavô, avô de minha avó por parte de pai, foi uma pessoa sádica, extraindo prazer da tortura que impunha aos escravizados, principalmente mulheres. Ele foi apenas um dos antepassados que cometeram crueldades com pessoas mantidas em cativeiro.

MaisPB – Mas o livro vai fundo, né?

Helena Vieira   – Sim, o livro tem muitas facetas. A parte histórica, sobre a escravidão nas mãos dos Vieira que vieram antes de mim, é uma delas. O meu esforço para entender meu pai é outra. Ele foi um pai severo e rígido, muito apegado a uma religiosidade que tentava impor aos filhos com mãos de ferro. Eu era uma criança sensível, em busca de afeto, que nunca veio na infância. Quando um de meus irmãos, que é mais velho do que eu, estava lendo o livro, ele me enviou um link para o Eclesiástico, capítulo 30, versículos de 1 a 13 -essencialmente conselhos para ser rígido com os filhos para que eles não caíssem na perdição. Meu pai lia isso para meu irmão e dizia que era sabedoria milenar. Isso explicou tudo para mim. Depois entendi que ele buscou remediar essa atitude um pouco quando já éramos adultos, mas para mim foi muito tarde. O estrago já estava feito.

MaisPB – Então, seu livro vai além da crueldade, da religião…

Helena Vieira   – Escrever o livro foi uma forma de revisitar aquela criança que eu fui, que cresceu com medo e depois com muita raiva do pai. Foi uma revisão com olhos adultos, já sabendo coisas sobre ele que na época eu não tinha como saber. Entendi que ele fez um imenso esforço para ser um bom pai aos olhos do Deus dele e em muitos aspectos conseguiu. Nunca nos faltou comida, um teto, roupa lavada e escola particular. O que é uma coisa extraordinária para quem sustentou nove filhos com o salário de bancário.  Mas a emoção também veio da oportunidade de conhecer Jussiape, a cidade onde ele nasceu, na Chapada Diamantina, que para mim tinha uma dimensão mítica. Não só fui à cidade (agora já são três vezes) como estudei sua história, que é o mesmo que estudar a história do Brasil. Jussiape ocupa um posto alto na minha hierarquia de afetos.

MaisPB  – Poxa, uma década de pesquisa deve ter sido uma saga juntar tudo e colocar no papel, né?

Helena Vieira   – Eu não tinha ideia que encontraria tantos documentos. Gastei um tempo imenso sofrendo, pensando como ia dar conta de botar aquilo no papel de forma coerente, enquanto trabalhava. Meu primo Cláudio Anjos me deu a maior força e me ajudou a encontrar uma jornalista e escritora, Bruna Menegueti, que dedicou seis meses para ler os documentos que selecionei. Ela fez pesquisas adicionais sobre o contexto histórico e colocou no papel uma narrativa impressionante dos meus parentes que viveram em Caetité no século XIX. O trabalho dela serviu de base para esta parte do livro. Então, como você vê, esses dez anos incluem muito tempo vazio, preenchido só pela ansiedade sobre o que fazer.

MaisPB  – Claro que o livro é triste, mas mesmo tardiamente você conseguiu fazer essa “denúncia” – quantas pessoas não conseguem sequer ter notícias de seus antepassados, não é?

Helena Vieira   – Eu penso muito nisso. Eu acho que muita gente, se quisesse investigar os antepassados, encontraria documentos nos arquivos públicos. Os arquivos foram uma boa herança dos portugueses e eles agora nos permitem investigar o passado. Se alguém tem curiosidade, procure um profissional de pesquisa de arquivo, porque, acredite, precisa de um profissional para fazer este trabalho. É minucioso, detalhado, exige um tempo e uma paciência enormes.  Eu ficaria muito feliz se meu livro servisse para estimular as pessoas a fazer o mesmo.

MaisPB – Aliás, como veio a claridade desse trabalho, você já desconfiava?

Helena Vieira   – Eu não desconfiava de nada. Um dia entrevistei meu pai sobre a infância dele, porque sempre fui atraída pelo nome Jussiape e por conhecer a cidade. Aí ele me contou coisas que me deixaram surpresas, como a mudança da família dele para Salvador, quando ele tinha 11 anos. Levaram quatro dias em lombo de burro, trem e navio (o vapor de Cachoeira). Uma semana depois fiz outra entrevista. Gravei tudo e transcrevi para o papel. Isso ficou guardado muitos anos até que um amigo me estimulou a escrever um livro. Eu decidi fazer uma busca com os nomes de meus avós e bisavós para ver se encontrava algo que desse um “caldo” à história. Deu no que deu.

MaisPB  – Caetano Veloso musicou no seu disco Livro, um trecho escrito por Joaquim Nabuco, que fala a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil – vem do livro “Minha formação”, do abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco. Esse livro foi escrito no final do século XIX, portanto pouco mais de uma década depois de abolida a escravidão no Brasil.   Parece que não tem fim, né?

Helena Vieira   – Isso é muito interessante. Caetano sempre vai no ponto certo, né? No livro, eu tento abordar a ideia de que estamos vivendo as consequências da escravidão até hoje. Faço referência ao fato de nunca ter tido de levantar um dedo em casa para fazer nada, porque, apesar de sermos uma família lutando para se manter na classe média, tínhamos ao nosso redor uma massa de pessoas carentes de trabalho digno, educação e assistência social, que se prestavam a nos servir em troca de uma remuneração baixa. Esse fenômeno é um resquício da escravidão. Essa ficha, por mais que pareça óbvia, ainda não caiu para muita gente. Eu espero estar enganada e que a consciência seja muito maior do que o que eu percebo. É verdade que, dos anos 60, 70, para cá, a situação melhorou e muitos negros têm se destacado em profissões que antes lhes eram vedadas, mas ainda estamos muito longe de ser um país que oferece oportunidades iguais a negros, brancos e indígenas.

MaisPB – Seu trabalho resultou em Jussiape, a cidade onde nada acontecia, mas acontecia muita coisa por trás dos malditos coronéis… aliás, a capa do livro é linda, embora escura e assim tocamos nossa história, né?

Helena Vieira   – Sim, essa é a ideia. Meu pai sempre dizia que não acontecia nada em Jussiape, mas quando eu fui investigar, descobri o Brasil lá dentro. Quem ler vai entender o que quero dizer. E a capa é linda, sim! Obrigada. Foi uma foto de Will Assunção, meu amigo jornalista, empresário, fotógrafo e professor jussiapense. As fotos dele são de uma imensa sensibilidade. Ele esperou o momento certo para tirar aquela foto da igreja no crepúsculo. Talvez por isso você tenha achado escura. Mas a escuridão é uma coisa relativa. Você, se não me engano, mora em João Pessoa, cidade do sol, e talvez por isso pense assim. Já eu moro em Londres, uma cidade nublada…

MaisPB  – Helena é um nome forte, uma jornalista nordestina que nem eu, que já trabalhou pelos 4 cantos do mundo. Vem aí, da estrada, a jornalista que agora é escritora?

Helena Vieira   – É um nome ligado a um clássico da mitologia grega e isso me deixa feliz. Sou atraída pelos clássicos, embora não os tenha estudado mais jovem e agora estou tentando remediar. (E eu gostei muito de seu nome, que imagino que seja ligado a Juscelino). Eu não sei quem veio primeiro, a estrada ou a escritora. Desde pequena eu queria fazer as duas coisas: escrever e viajar. As duas paixões me levaram a escolher jornalismo na hora de fazer o vestibular (naquela época ainda existia). Sempre tive uma imensa sede de conhecimentos, de conhecer lugares, línguas e culturas diferentes. Quando era pequena cheguei a escrever poemas, mas a timidez não me deixou prosseguir. Escrevi textos profissionalmente e sabia que queria escrever mais, textos mais longos e não só jornalísticos. O livro Jussiape me abriu essa porta e espero continuar escrevendo.

MaisPB –   Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Trabalhou nos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo, onde foi correspondente internacional, e na edição brasileira do The Wall Street Journal e na Bloomberg TV. Atualmente é editora do site LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science – tanto tempo, tanto trabalho, né?

Helena Vieira   – Eu olho para trás e vi que fui saltando de lugar em lugar. Mas não foi uma coisa racional, planejada. Eu simplesmente estava aberta a oportunidades que a vida colocou na minha frente. E sempre fui muito estudiosa, o que me permitiu ampliar meu leque profissional. Nunca pensei em ser jornalista de economia. Eu fiz um curso que se focava muito na economia política internacional e por isso todos os frilas de economia, que ninguém queria fazer porque era chato, acabavam vindo para mim. Eu, que precisava trabalhar, ficava agradecida. Foi uma oportunidade de crescer profissionalmente e trabalhar em grandes veículos brasileiros e americanos. E agora edito um blog da LSE, uma universidade onde aprendo muito. E nas horas vagas penso em escrever.

MaisPB  – Já lançou o livro em São Paulo e Salvador, participou da última edição da Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro. Não seria interessante lançar esse livro no país inteiro?

Helena Vieira   – Sim, muito interessante! Meu sonho é viajar o Brasil lançando o livro e conversando com pessoas de todos os cantos. Agora em 4 de maio fui convidada pelo Festival Literário de Poços de Caldas a participar da mesa “Mulheres Negras e a Reparação da Escravidão” com a presença da filósofa e escritora Sueli Carneiro e das escritoras Adriana Santana e Maria José Tita. Adoraria ir à Paraíba em algum momento. O que você me recomenda?

MaisPB  – Na verdade, quem é Helena Vieira?

Helena Vieira   – Ah! agora você me pegou… Faço psicanálise há vários anos e não cheguei a nenhuma conclusão. Mas muitos aspectos de mim fazem parte do que conversamos nesta entrevista. Já dá para ter uma ideia de “como” eu sou. Mas “quem” é bem mais difícil. Acho que dificilmente uma pessoa consegue se definir por uma essência, porque isso é uma coisa que muda ao longo da vida, você não acha?