João Pessoa, 01 de abril de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Fico hesitando entre o meu Calímaco e o novo livrinho que me chega de um jovem poeta do Piauí. Não sei se vou reler A clemência, de Sêneca, ou ler as narrativas de Philip Roth. Vejo, à minha frente, enfileirados no birô, o novo romance de Manoel Herzog, (foto) A língua submersa; os poemas de Clareanna Santana, com o título geral de Rebento; a fortuna crítica, Eros e Tânatos, sobre Dimas Macedo; Nos bastidores da poesia, reunião de textos críticos de Maria de Lourdes Hortas, e outros livros mais.
Que fazer?
Sinto desejo de voltar aos clássicos. Não dá para viver sem os clássicos. Reler Montaigne, passear pelo Banquete, de Platão; rever e sublinhar os aforismas de Schopenhauer; escutar a música miraculosa dos tercetos de Dante; fazer a viagem maravilhosa a caminho das Índias pelas décimas de Camões; deixar-me embalar pela sutileza lírica da Mensagem, de Fernando Pessoa; mergulhar no passado épico do Romance da Inconfidência Mineira, de Cecília Meireles e tantas e tantas obras literárias com que devemos conviver, se leitores somos. Leitores de verdade. Leitores amorosos e desinteressados.
A tradição clássica está aí à minha disposição. Com seu tempo lento, suas exigências de solidão e sossego, paciência e recolhimento, paz e repouso. Fosse possível me evadir para uma ilha distante, levaria os clássicos na mala e no coração. Levaria ainda outras coisas mais, sobretudo se inúteis e prazerosas.
O clássico se renova a cada leitura. De minha posição de leitor, de meu lugar de fala, de minha localização no espaço contemporâneo, vou construindo e reconstruindo os meus clássicos. O Montaigne, por exemplo, dos meus quinze anos, adentrando o curso clássico no Colégio Estadual da Prata, lá na Serra, não é o mesmo deste que tenho aqui de lado, quase já na beirada dos setenta. Eu mudei, ele mudou. Tudo muda, não é? O mundo é feito de mudanças, diz o poeta.
Dia desses me peguei, esquecido, dentro das páginas de Ovídio, tanto nas Metamorfoses como em A arte de amar. A fusão dos reinos animal, vegetal e mineral, assim como as surpreendentes transformações das criaturas, numa como que barroca alegoria da condição humana, me fizeram habitar a alcova do sonho, lançando-me num mundo fantástico, eivado de beleza e sabedoria. O mesmo me ocorreu com as delícias do erotismo apreendidas na propedêutica, ao mesmo tempo lúdica e filosófica, da pedagogia amorosa e sensual que o poeta latino nos legou.
Na intimidado com os clássicos, percebo a banalidade grotesca do universo contemporâneo. O esgar das massas, a ferrugem da obsolescência, a velocidade das informações, o glamour dos códigos digitais, publicidade, merchandising, fake News, aplicativos, nada disso tem a ver com o clássico. A rapidez, a eficácia, a eficiência, a efetividade não combinam com o clássico. O mundo virtual, muito menos.
Só que estou falando do clássico, valendo-me da tela do computador. Irônico, não? Adoro os clássicos, mas sou, felizmente ou infelizmente, um homem de meu tempo, um leitor de agora. Não posso nem devo desprezar esses meios que são extensões de meu corpo e da minha consciência. De minha sensibilidade, de minha memória e de minha imaginação.
Por isto mesmo, não posso me exilar nas ágoras do território ático, acompanhado tão somente dos mestres do passado, com suas línguas vivas e línguas mortas. Ítalo Calvino, que formulou quatorze conceitos do clássico, não descarta a presença e o vigor do contemporâneo. Diz ele: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”.
Ou seja, o clássico não existe sem o contemporâneo. Talvez o contemporâneo seja exatamente a outra face do clássico. O clássico, portanto, não escapa à logica entranhada das redes. Se tudo está em rede, isto é, em conexão, tácita ou explícita, não devo, como leitor, excluir nada. A propósito, o bom leitor é guloso, pantagruélico, ninfomaníaco. Quero tudo e quer mais. Nunca se sacia.
Vou reler, sim, o meu Calímaco. Mas também vou ler os poemas do jovem poeta do Piauí. Certamente em algum ponto de mutação, inscrito na galáxia porosa das palavras, eles se encontrem, como se encontra, por exemplo, nos romances de Philip Roth, quase tudo da tragédia grega. E, como dizia, meu velho e querido amigo Jomard: “Ler só dá prazer!”.
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OPINIÃO - 22/11/2024