João Pessoa, 15 de maio de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Li, em certo lugar, que toda biblioteca é única e tem a cara do seu dono. Fiquei pensando. Tenho uma biblioteca que fui organizando ao longo de minha vida, adquirindo e recebendo livros de todos os lugares e de variadas espécies. Qual seria, então, a marca de sua unicidade? E, se ela, a biblioteca, tem a minha cara, qual seria, de fato, a minha cara?
Estudei Direito, principalmente a sua teoria, o direito criminal e, hoje, aprecio as relações entre direito e literatura. Fazem parte de minhas estantes nomes como Francesco Carnelluti, R. Von Ihering, Alessandro Groppali, Giusepe Bettiol, Nélson Hungria, Roberto Lyra, Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Goffredo Telles Júnior e tantos outros.
Não sei, ao certo, a contribuição que me deram estes estudiosos na formação de minha personalidade. Talvez algum senso de justiça, alguma medida de equilíbrio, o cuidado em ponderar as múltiplas facetas que envolvem os conflitos humanos e, pasmem, um gosto muito particular pela ordem estilística no manuseio das palavras. Ainda hoje volto às páginas de Caio Mário da Silva Pereira, não tanto pelos conteúdos odisseicos do direito civil, mas, sobretudo, pela elegância e fluência verbais que caracterizam a sua escrita. Houve uma época em que os juristas sabiam escrever!
Fiz o curso de Letras, mestrado e doutorado em Literatura Brasileira. Por isto mesmo, a espinha dorsal de minha biblioteca reside nas obras literárias, linguísticas e filológicas. Dicionários, enciclopédias, obras de referência, ao lado dos muitos gêneros, ortodoxos e heterodoxos, compõem esse acervo que muito revela de meus interesses cognitivos. Portanto, também, da minha psicologia de leitor.
Alguns autores têm a minha preferência, não importa o gênero literário que cultivem. Nutro uma especial predileção pelos estudos de teoria da crítica, da poesia e dos gêneros íntimos, isto é, diários, memórias, autobiografias, confissões, cartas, biografias, biografemas etc. A crônica, o conto, a novela e o romance ocupam grande parte no meu tempo de leitor. Leio os contemporâneos, os novos, os emergentes, porém, nunca abandono os autores de sempre, clássicos e modernos, aqueles que residem definitivamente na minha mesa de cabeceira ou na cadeira de balanço ao lado da rede.
Ora, estou com Dante, abismado nos seus tercetos sagrados. Ora, degusto a sabedoria de Montaigne e o desespero de Pascal. De vez em quando, volto aos gregos e repasso as aventuras de Aquiles, na Ilíada, e de Ulisses, na Odisseia, estas duas narrativas originais e fundantes. Quase sempre folheio os volumes de Kierkegaard, os versos de Baudelaire, os capítulos de Flaubert, as ironias furibundas de Shopenhauer, o destemor e a iluminação de Nietzsche, a amargura eucarística de Cioran. Claro, Fernando Pessoa não me deixa, seus heterônimos me fascinam. Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, Ariano Suassuna compõem a Santíssima Trindade de minhas escolhas paraibanas. Gosto de Lúcio Cardoso, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Nélson Rodrigues, Machado de Assis. Machado de Assis, só ele, e as coisas sobre ele, constituem um núcleo duro de minha biblioteca.
E há os ingleses, os alemães, os norte-americanos, os espanhóis, os latino-americanos, os italianos, os russos. Ah! Os russos! Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Tchecov, Maiakóvski, Anna Akhmátova. Por maior que seja a Sibéria, ainda seria pequena para conter e guardar a grandeza dessa literatura.
Que marcas estes autores e estas obras imprimiram no meu rosto, n o meu modo de ser, na minha maneira de mensurar as coisas e conviver com as criaturas?
Verdade. A minha biblioteca é única e tem a minha cara. Única, na sua pluralidade de saberes, onde a filosofia, as ciências sociais, principalmente a história; a estética, o cinema, as artes plásticas, as religiões dialogam entre si no ecumenismo de suas mensagens. Tem a minha cara, sim, pois sou feito desses livros que me acompanham na alegria e na doença, num casamento indissolúvel e sempre amoroso.
O repertório, a arrumação, o cuidado, a limpeza, as seções, os assuntos, as possíveis divisões, as doutas classificações, tudo é fundado na razão e na fantasia, frutos de uma mente e de um coração irrepetíveis.
As obras e os autores que me impregnaram com suas lições de beleza e sabedoria também adquiriram, no compasso da leitura diuturna, certo jeito de ser que vem das minhas mãos, do meu olhar, da minha forma individual e única de amá-los com um amor que não cansa e não se desgasta. Se Shakespeare é um autor universal, como Homero, Dante, Dostoiévski e T. S. Eliot, por exemplo, sinto que tenho o meu Shakespeare, o meu Homero, o meu Dante, o meu Dostoiévski e o meu T. S. Eliot.
Minha biblioteca tem sido o meu mundo. Meu mundo tem sido os livros. Minha biblioteca sou eu!
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OPINIÃO - 22/11/2024