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No registro de 25 de março de 2014, do diário As palavras e os dias: a memória do caminho 2, o professor e ensaísta, José Rodrigues de Paiva, alude a um tipo especial de leitura a que chama de “acaso ou de intervalo, das que se começam sem se saber se serão levadas ao fim”. Isto, para explicar, em meio à urgência de leituras de trabalho, professor que é, o reencontro com as Anti-memórias, de André Malraux.
Gosto dessa nomenclatura para definir as leituras casuais e intervalares, tão comuns em minha rotina em meio aos livros.
Nunca deixo de lado a leitura cerrada, progressiva, paulatina, da primeira a última página de um livro, seja um longo e exaustivo ensaio filosófico ou de exegese literária, seja a travessia encantatória de um grande romance. Um desses romances de peso, volumoso, credenciado, indispensável à formação cultural e humanística. Um Em busca do tempo perdido, por exemplo, no seu fluir lento e minucioso por dentro dos covis da memória e da imaginação.
Agora mesmo ando às voltas com Henry James, no seu monumental A taça de ouro, em edição da Nova Fronteira, com tradução de Alves Calado. Romance que não pode e nem deve ser lido depressa, voltado apenas para o desenrolar das ações, uma vez que, decerto, nele, as ações não constituem o ingrediente principal. A não ser que se as vinculem, as ações, às camadas psicológicas de cada personagem, na sua presença e singularidade.
Diria que, em certas nuances de estilo e de método narrativos, o escritor norte-americano, depois naturalizado inglês, como que prenuncia certos compassos proustianos, exatamente pela capacidade de alcançar regiões profundas e indevassáveis da alma humana, com suas minudências psíquicas e sigilos inconfessáveis. Seus romances, portanto, são romances analíticos, reflexivos, ensaísticos, atentos ao refinamento da palavra e aos traços existenciais que caracterizam os personagens. Grande literatura, algo não muito habitual na dissolução dos tempos líquidos ou pós-modernos.
Do ponto de vista da leitura, são romances bíblicos, na medida em que é preciso ler e reler cada parágrafo e meditar profundamente acerca de suas ressonâncias significativas. Romances que, devido mesmo ao nível rigoroso de suas exigências, parecem abrir janelas para o convívio com outras leituras, as casuais, as de intervalo, as circulares, as de repouso, as de devaneio, lúdicas, livres, gratuitas, descompromissadas, exercidas no afago do silêncio, leituras distantes do febril turbilhão das ruas.
Trago, assim, para o refúgio da rede no terraço, a gravidade dessa leitura de muitos dias, degustando, aos poucos, porém, progressivamente, a cota de prazer de uma imagem poética ou de um pensamento original. Henry James, como William Faulkner, Henry Miller, Philip Roth, só para citar escritores norte-americanos de minha eleição, enriquece minha experiência de leitor e se deixa, naquelas horas de acaso ou de intervalo, acompanhar da presença, ligeira e fugidia, de outras vozes que ampliam a esfera mágica da leitura.
Ao lado de A taça de ouro, que divide seus predicados literários e estéticos com Samuel Wainer: o homem que estava lá, biografia escrita pela jornalista Karla Monteiro, na perspectiva das leituras contínuas e cerradas, compulso as páginas de uma série de livros, sem saber se “serão levadas ao fim”, como diz o mestre português-pernambucano, José Rodrigues de Paiva.
Agrada-me ler os aforismos de Emil Cioran, abertos ao acaso, no volume Nos cumes do desespero. Sublinhar esta ou aquela frase, dotadas de alguma verdade e de muita beleza. No filósofo romeno, se o conteúdo traz a gosma da amargura e do niilismo, do pessimismo e da iconoclastia, o manuseio das palavras quase sempre se converte na textura incandescente da melhor poesia.
E por falar em poesia, vejo-me em diálogo com os Papéis de poesia II, do acadêmico Antonio Carlos Secchin que, como poucos, no âmbito crítico da atualidade, sabe ler e analisar, com argúcia e elegância, o idioma poético, em suas diversas componentes. Quer nos passeios teóricos, quer nos passeios críticos, quer nos passeios metacríticos, o poeta e ensaísta faz aquela leitura que, em sendo eficaz e efetiva do ponto de vista racional, não deixa de conter a estesia necessária ao discurso poético. Secchin ler bem. Com leveza e densidade.
Refiro estas como poderia referir tantas outras, pois nunca leio somente um livro. O acaso me põe, não raro, na volúpia do acúmulo. Os intervalos me dão o prazer de descobrir e experimentar novas leituras, mas também o prazer de retomar aquelas que vão me acompanhar durante muito tempo. As leituras de acaso ou de intervalo são como viagens de férias, como aqueles furtivos e ardentes encontros amorosos, como uma doce felicidade clandestina.
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OPINIÃO - 22/11/2024