João Pessoa, 28 de maio de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Eu não vou definir o que é alegoria. As gramáticas e os dicionários, especializados ou não, estão aí para isso. Optei por uma paráfrase comentada do Canto XXVII do Inferno, de Dante, na esperança de que o termo possa se definir, com o conceito fluindo, então, naturalmente, a partir da percepção recebida da leitura. Aconselho, no entanto, que os meus queridos leitores não se restrinjam à minha paráfrase e vão à íntegra do texto.
Guido da Montefeltro (1220-1298), Senhor de Urbino, originário da Emília-Romanha, ao norte da Itália, foi militar, tendo obtido grande vitória sobre os Guelfos, como líder dos Gibelinos, em 1275. Velho e enfermo, porém, naquela parte da vida em que cada um deve procurar recolher as velas e as bandeiras (versos 79-83), Guido resolve converter-se e entrar na Ordem de São Francisco. O Papa Bonifácio VIII, chamado por ele de “o príncipe dos novos fariseus” (verso 85), desvia-o, porém, do caminho que ele, Guido, cingido pela verdade divina, buscou para pôr cobro aos erros cometidos (versos 68 e 84). O Papa convence-o a aconselhá-lo sobre a melhor maneira de aniquilar a família Colonna, cristãos rebelados na Palestrina, região do Lácio, que foram contra a eleição do Papa. Bonifácio promete lavar os pecados de Guido, por ser ele o detentor das chaves do reino do céu, podendo, portanto, abri-lo e fechá-lo, de acordo com a sua vontade (versos 103-104).
O conselho de Guido ao Papa, mau conselho, na realidade, é sucinto e muito prático: muitas promessas e poucas realizações o garantirão no trono (lunga promessa con l’attender corto/ti farà trïunfar ne l’alto seggio, versos 110-111).
Em lugar de perseguir os seus inimigos, os árabes e os judeus de então, Bonifácio VIII, com febre de soberba (verso 97), falando com palavras de ébrio (verso 99), persegue os seus compatriotas, levando a guerra perto de Latrão (avendo guerra presso a Laterano, verso 86), por causa das críticas que recebe e da desobediência da família Colonna, que já não reconhece mais a sua autoridade, acusando-o de ter sido eleito ilegalmente.
Dante e Virgílio encontram Guido, no final do Oitavo Bolsão, onde são punidos os maus conselheiros (Canto XXVII). Após a conversa com o ex-conselheiro fraudulento, dublê de militar e franciscano, o poeta florentino e o seu mestre se encaminham para o Nono Bolsão, onde se encontram os semeadores de discórdia. Os dois poetas estão, portanto, numa espécie de antessala que revela os maus conselheiros, mas que já deixa antever a consequência de suas atitudes nefastas – a existência, no caso, dos que fazem proliferar a cizânia.
O uso da força de repressão, aconselhando mal e semeando a discórdia entre os cidadãos, em lugar de combater os verdadeiros inimigos, leva ambos, Guido e Bonifácio VIII, à condenação ao inferno. Na hora da morte de Guido, o próprio São Francisco comparece à sua cabeceira, mas um querubim negro (versos 112-114) reclama a sua alma, pelos conselhos fraudulentos ministrados (verso 116). Realiza-se, assim, aquilo que Guido aconselhou ao Papa, que lhe prometeu o céu, mas que, ao fim e ao cabo, colocou-o no inferno.
Lamenta-se Guido, perdido e amargurado (versos 128-129), do fato de que quem não se arrepende não é absolvido; juntar arrependimento e desejo de poder é uma contradição que não permite a absolvição. Nas mãos de Minos, o juiz incorruptível do inferno, ele se tornou réu do fogo impuro (verso 127).
Esperemos…
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