João Pessoa, 05 de junho de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Carapuça (João Pessoa: Dromedário, 2023), é o livro de poemas com o qual Eugenia Correia estreia na cena literária. Já o título, na sua ambivalência semântica, vale por uma metáfora inominável, uma vez que remete para múltiplas significações. Prefiro me acostar a ideia de que, no registro poético, o termo se aplica à multifária possibilidade do poema, no percurso que desenvolve para capturar ou pensar a substância essencial das coisas e dos seres. Afinal, a carapuça consiste também numa espécie de escrita.
A carapuça é um bicho, “O animal mais fantástico {…} para ele não se esconde ∕ o mais fino segredo”, é dito, logo no primeiro poema, à maneira de profissão de fé, a se complementar, em seus volteios metalinguísticos, com o texto da página 19, “Estilo”, de que destaco estes versos: “Pelo corte ∕ se reconhece a mão {…} nos cortes o artista, ∕ o pugilista, ∕ o cirurgião”.
Estabeleço estas correlações no tentame de alcançar a estratégia expressiva, o modus operandi, o dispositivo retórico, dessa dicção lírica marcada pela concisão verbal e por um raro e refinado senso de percepção dos objetos, dos sentimentos, das emoções, enfim, de tudo o que compõe o amálgama das motivações estéticas.
A poesia dessa piauiense, radicada em São Paulo e dedicada às interfaces entre arte e psicanálise, radica-se, sobretudo, no ritual de passagem que ocorre entre os apelos da descrição, medida e ponderada, e a reflexão, aberta às solicitações do pensamento crítico e daquilo que Hugo Friederich denomina de “fantasia criativa”. O dado concreto se abre, portanto, para o milagre da abstração.
Confira-se esta “metodologia”, com a leitura do dístico, “Enigma”, à página 21: “Gota de orvalho reflete o universo: ∕ onde está o olho de quem vê?”. Ou mesmo no poema seguinte, página 22, intitulado “A brisa”, assim enunciado:
E será que existe mesmo
o que se chama silêncio?
Mesmo a brisa, tão lisa,
quando deixa a marca ´nem ouvi você chegar…`
o silêncio,
o escutado,
não terá a consistência da mais pura
a genuína
a mais nítida eloquência?
À mesma linhagem pertencem muitos textos da coletânea, a exemplo, entre outros, de: “Aurora”, “Elegia para um menino assassinado”, “Lábil”, “Caramujo”, “Honras fúnebres”, “Mapa” e “A lendária memória dos calendários”. Aqui, salvo engano, efetiva-se uma das escolhas do caminho discursivo, isto é, do “como” Eugênia Correia se apropria da palavra para inseri-la no melhor lugar possível, conforme lição magistral do poeta inglês Thomas S. Coleridge.
Ao minimalismo do verso, fundado em bases rigorosas e econômicas, associa-se o olhar sensível e singular diante do material que a realidade oferece, em sua variedade temática e motivadora. Eugênia Correia é poeta dos detalhes, das filigranas, das miudezas, atenta, pois, ao mínimo, ao oculto, ao invisível que latejam no plano ordinário da existência. Atenta, assim, à sua magia imperceptível, à sua fala encantatória, enfim, à sua transfiguração poética.
Em face da epidêmica banalização em que se compraz certos segmentos da poesia brasileira contemporânea, seduzidos pelo canto de sereia das boas intenções e dos vocativos políticos e culturais, penso que a autora de Carapuça estreia com o pé direito e já maturada em seu ofício de lidar, literariamente, com a palavra.
Sua poesia assimila as fraturas da modernidade, na medida em que, sem perder a distância crítica na captura dos fenômenos e dos objetos que a atraem e a movem, lança mão, quase sempre, daquela tonalidade lírica, delicada e sutil, para desvelar a complexidade do mundo e da vida. Para ratificar o que digo, não vejo prova melhor do que o poema “O primeiro códex”, que transcrevo, à guisa de conclusão:
O mundo já estava lá
as águas, os ventos, o frio
a concha já estava lá
quando a espuma aconchegou seus contornos
mas a vida só eu por si
quando alguém abriu aquilo
e fez-se um rastro
na página virada.
A pérola, a pálpebra
um olhar respirando.
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OPINIÃO - 22/11/2024