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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Tempos absurdos

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publicado em 28/06/2024 às 14h09

O Canto XXIX do Inferno nos mostra Dante e Virgílio (foto) saindo do Nono Bolsão e adentrando o Décimo e último recanto do Oitavo Círculo, o mais complexo de todos os demais percorridos pelos dois poetas, que deixam os condenados por semear a discórdia e se encontram com os falsários, mais precisamente, os condenados pela prática de alquimia.

Não é, como sabemos, uma tarefa fácil a de Dante, levado ao inferno como espectador, para dar ciência ao mundo dos vivos das consequências dos maus atos praticados em vida. Também não é tarefa das mais amenas a Virgílio, designado pelo poder divino superior a ser seu guia (duca, verso 17) e mestre (maestro, verso 22), tendo que guiar e cuidar de seu protegido, advertindo-o, por exemplo, que já passa do meio dia e, daí a pouco, a lua estará surgindo. A reprovação por alguns atrasos de Dante, que bem se compreende pela situação inusitada de um vivo, no mundo dos mortos, assistindo a punições exemplares e terríveis, é necessária, tendo em vista que eles já gastaram metade do tempo da travessia de 24 horas pelo inferno. Ainda faltam o décimo bolsão e o Nono Círculo, dividido em 4 zonas. É preciso pressa, portanto.

A visão no Décimo Bolsão é das piores, com os condenados cheios de pústulas (schianze, verso 75), de que exala um odor insuportável (puzzo, verso 50), deixando o ar empesteado, e se coçando com força, como alguém que escova um cavalo ou descama peixes, numa aflição eterna que os torna quase impossíveis de se mover, obrigando-os a se sustentar um nas costas do outro. É nessa situação que Dante e Virgílio encontram Griffolino d’Arezzo (?-1272), queimado a mando de Albero da Siena (século XIII/XIV), mas não pelo fato de ser alquimista (ma quel per ch’io mori qui non mi mena, verso 111), acusação plausível para a fogueira. Griffolino, na sua longa fala (versos 73-120), diz que outro foi o crime pelo qual foi queimado. Procurando fazer uma brincadeira, Griffolino disse poder voar (I mi saprei levar per l’aere a volo, verso 113).

Imagine o leitor que coisa mais absurda é alguém ser punido por uma jocosidade, e punido com pena capital! Que tempos perigosos, o da Idade Média de Dante, em que se podia prender e condenar alguém pelo terrível crime de ter dito uma brincadeira, numa roda de amigos. Que bom que já não vivemos em tempos dantescos. Vivemos numa época moderna em que se sabe fazer a diferença entre o jocoso e o sério. Se Griffolino vivesse hoje e dissesse que poderia voar, seria encarado com admiração por alguns, mas jamais seria vítima de qualquer processo, porque já não vivemos o tempo dos prepotentes e senhores absolutos da verdade absoluta, em relação à qual não pode haver qualquer tergiversação. Bons tempos, os nossos!

Voltemos a Dante, pois os absurdos medievo-inquisitoriais não acabaram. Depois de morto, a alma de Griffolino d’Arezzo é conduzida ao inferno, onde foi julgada por um juiz ao qual não se permite falhar (a cui fallar non lece, verso 120), Minos, o antigo rei de Creta, filho de Zeus, alçado à condição de juiz do Hades pelo pai. Minos, juiz incorruptível e, sobretudo, justo, condena a alma de Griffolino por ter praticado a alquimia, tornando-se um falsário de metais, não pela brincadeira. Condenação justa, tendo em vista a prática de recursos ilícitos para se auferir algo em benefício próprio.

Só reafirmando que vivemos bons e felizes tempos, em que a Justiça impera, veja o leitor o absurdo que nos é informado por outra alma purulenta, Capocchio (?-1293) também alquimista e de Siena (sì vedrai ch’io son l’ombra di Capocchio,/che falsai li metali com l’alchìmia, versos 136-7), condenado ao mesmo bolsão, e que se encontra escorado em Griffolino. Dante, ao indagar se não há gente que não seja vaidosa, em Siena, ainda mais vaidosa do que os franceses, obtém de Capocchio uma resposta irônica (versos 124-139): salvam-se os doze jovens de Siena, que compuseram a famosas “brigata spendereccia”, a brigada dissipadora, que dilapidou uma fortuna de centenas de milhares de florins, em apenas dois anos, destruindo terras, vinhas, plantações do caríssimo cravo e, claro, dinheiro. Essa boa gente foi poupada de qualquer acusação ou processo, pelas suas ações benevolentes e altruístas (e tra’ ne la brigata in che disperse/Caccia d’Ascian la vigna e la gran fonda, versos 130-1). Tutti buona gente, enfim…

Só mesmo vivendo em nossos tempos justos é que achamos um absurdo uma brincadeira levar à condenação de uma capital e a dilapidação de patrimônios, cuja origem sempre se ignora, ser exaltada como uma qualidade.

Ao que parece, Dante aprendeu bem a lição de Virgílio, seu guia e doutor. Com ele, revelando-nos a injustiça e o absurdo, espero poder aprender o sentido da Justiça, para não incorrer e insistir nas mesmas atitudes prepotentes de busca por poder.

Agradeçamos aos dois poetas.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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