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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

O sentimento de quem faz 80 anos

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publicado em 15/07/2024 ás 12h19

Desejo aqui registrar o sentimento que me toma ao completar 80 anos. Olho a trajetória da minha linha do tempo e várias emoções me invadem num processo de reflexão. Todo o homem é fruto do contexto de formação e informação que teve ao longo da vida e isto determina sua maneira de pensar, de sentir e de agir sobre sua realidade o que o faz histórico e situado. Comigo não podia ser diferente. Procurei refletir a minha vida até os dias de hoje e rastrear com o olhar no tempo fugindo de   mim mesma e buscando o passado que já vai muito distante. Colhi as lembranças que me vieram como legado e procurei identificar as repercussões na minha formação. Sinto palpável que fui influenciada por dois mundos, aquele do ambiente doméstico existente de maneira informal, na vivencia com meus pais e irmãos e aquele que foi construído no recinto escolar. Com o passar do tempo senti bem nítidos esses componentes na minha estrutura e conjuntura de criação. O primeiro refere-se ao período infantil onde vivi exclusivamente com meus familiares, que não eram ricos mas souberam dosar todos os meus desejos de criança. Não foram muitos, até porque os brinquedos eram escassos. Tinha uma boneca linda, grande, italiana, que ganhei de um amigo de meu pai que tinha vindo do exterior. Para mim era tudo pois me contentava, como criança, porque possuía cabelos que eu podia penteá-los e abria e fechava os olhos, prestando-se muito bem para conter a fantasia de dizer: “ela dorme” e aí as brincadeiras se aproximavam mais da realidade. Havia também uma coisa que ela fazia: atrair minhas coleguinhas pois todas queriam brincar comigo.  Quando fui estudar no colégio, interna, levei a boneca que causou sensação. Recordo minha infância e julgo que fui muito feliz, tive o aconchego de meus pais e o acolhimento das freiras francesas catarinas, que me cercaram de ensinamentos, carinho e amor.

Por que fui estudar num colégio interno? Meu pai era engenheiro e as freiras conseguiram que ele construísse o colégio sem que fosse cobrado nada. Elas frequentavam a minha casa e eram simpáticas comigo e eu gostava delas. Um dia a Madre irmã Helena disse: “D, Elza deixe eu levar essa menina para estudar no colégio?” Isto na minha frente.  Então a partir daí eu fiquei dizendo que queria estudar no colégio das freiras. Até que meus pais acordaram e no ano seguinte minha mãe fez meu enxoval e eu fui estudar. Convertia-se em momento de alegria a ida para o colégio. Tanto que fui interna no Colégio da Luz em Guarabira, onde cursei o primário e ginásio, recebendo uma educação primorosa e sentia-me feliz, querida e integrada com minhas colegas e com o corpo docente e em nenhum momento senti-me constrangida ou incomodada naquele educandário que ministrava uma educação integral, que ia do ensinar como se portar à mesa e saber comer uma fruta, como a banana, que não era descascada com a mão e sim com a faca; ao ensinar o francês e os conhecimentos gerais. Durante o período que estive naquele estabelecimento recordo, com saudades, dos mestres, das brincadeiras com as colegas, a barra bandeira, o baleado, o ossinho, e já mocinha integrei o time de vôlei do colégio. Participei de teatro, encenando a filha da rainha, frequentei aula de pintura e cheguei a pintar duas telas; aprendia piano e acordeom; tive educação esmerada e integral. Lembro-me, ainda criança, meu tio Milito, que era meu padrinho, presenteou-me com um radinho portátil que trouxe de uma viagem aos USA e era uma novidade espetacular. Sucesso entre minhas colegas, cada uma que quisesse emprestado para ouvir programas de rádio, isto principalmente na hora de dormir e aí eu emprestava a uma a outra, O radinho causava sucesso. Carrego boas lembranças. O colégio era simples, sem luxo, mas os professores exerciam a função de mestres, verdadeiros educadores. Como legado deixei a boneca que ainda era linda e passou a ser adorno em cima do piano do colégio.

A segunda etapa de minha educação foi quando adentrei ao Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Já estava uma moça sabendo o que queria e destinada a frequentar a Universidade na área da Saúde. Este desejo orientava para realizar o curso cientifico que integrava conteúdo de ciências exatas, enquanto as colegas que desejavam cursar letras, direito e humanas cursavam o clássico, que puxava mais para o conteúdo das línguas neolatinas, história e geografia. Estudei 3 anos nesse estabelecimento. Integrei o time de vôlei do colégio tendo participado, todos os anos, das olimpíadas estudantis. Fiz amizades que preservo até os dias atuais. Várias colegas já partiram.

Seguindo a caminhada, nesta terceira etapa, prestei vestibular para Enfermagem. Cursei e especializei-me em Enfermagem de Saúde Pública, fiz Mestrado de Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz na cidade do Rio de Janeiro. Prestei concurso para Enfermagem de Saúde Pública na UFPB em 1968. Ainda lecionando na Enfermagem realizei Curso de Pedagogia com área de concentração em Administração Escolar, por entender que o curso iria ajudar-me na carreira de professora. Ele também me deu subsídios para o concurso na área da educação. Permaneci na Enfermagem até 1992 quando fiz novo concurso para a área de educação para ensinar Didática e Prática de Ensino.  Recebi o título de professora Emérita da UFPB, pela atuação na Enfermagem, no ano de 2011.  Realizei Curso de doutorado na Universidade Nacional de Educação de Madrid, tendo sido aprovada na área de Didática e Filosofia da Educação com o conceito “sobressaliente com Lauder”. Na área de educação permaneci 15 anos quando fui aposentada pela compulsória aos 70 anos. Durante minha vida acadêmica vivi intensamente dando o melhor como pessoa e profissional; escrevi livros, criei teoria, participei ativamente da vida universitária, amava o que fazia e hoje sinto imensa saudade. Fiz uma síntese de como a vida me construiu   estruturalmente.

Tentei separar a vida profissional da vida pessoal, todavia constata-se ser impossível pois todo esse caminho percorrido não ocorreu isoladamente. Elas caminharam juntas. Casei-me com Itapuan   Botto Targino, em 1970, e tive três filhos e toda a trajetória foi acompanhada por minha família e incentivada por um esposo que sempre teve palavras de estímulo durante todo o tempo. Reflito que a minha vida profissional foi bem-sucedida porque tive um homem ao meu lado que me amou e apoiou em todos os momentos, via no meu crescimento também o dele. Logo depois da aposentadoria adentrei na Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP), o que tem preenchido meu tempo nesse momento do ocaso da vida.

Dei uma passada na reflexão do meu interior e dissertei o que me veio na mente como recordação dos fatos, dos acontecimentos, do tempo, do que desfrutei da vida e o que ela me ofereceu. Mergulhei no mais profundo do meu íntimo e descortinei minha vida desnudando-me sem cerimônias, porque brotou do sentimento verdadeiro que trago comigo e hoje vive presente em mim, e, não há dúvida, foi determinante para ser a pessoa que eu sou.

Como encaro essa chegada aos 80 anos lúcida e com vontade de viver? É um privilégio para pouca gente. O que é motivo de comemoração e agradecimento a Deus por esta dádiva por Ele concedida. Assim aconteceu a celebração na noite do dia 15 de junho, No convite constavam os dizeres de um autor desconhecido. “ A maturidade de oito décadas nos ensina que a simplicidade é a chave para a verdadeira felicidade, encontrada nos pequenos prazeres do dia a dia”. E assim me pronunciei durante o meu jantar de celebração.

Boa noite a todos! Meus queridos familiares e amigos. Estou muito feliz em poder recebê-los aqui nesta noite para comemorar meus oitenta anos.  Na seara da vida nada acontece por acaso, tudo tem uma razão de ser. Ela é construída de momentos que são únicos. Com essa idade já vivi experiências, recebi lições, acertei e errei, fiz escolhas equivocadas, dei conselhos, recebi outros adquirindo e incorporando conhecimento, sempre firme em minhas convicções e, assim, fui construindo a minha história e a trajetória, cheia de amor, sabedoria e aprendizado para chegar até aqui. Ela é só minha, mas sofreu o processo da influência de meus relacionamentos, das informações e da formação que recebi aos longos dos anos, de meus pais, Serafim e Elza, da convivência com meus irmãos Antônio Gumercindo, que já não está mais entre nós, Serafim, que devido a motivo superior não pôde estar aqui presente e Maria Célia e a Irmã de coração Avonete. É ainda o resultado dos ensinamentos que recebi no colégio das irmãs Catarinas e das Lourdinas, bem como dos meus mestres universitários e do contexto da realidade em que vivi e me criei. Muita coisa tinha a dizer dos feitos e das realizações acumuladas. O homem é produto histórico dessa realidade que ao mesmo tempo a constrói e é construído por ela. É um ser ideologizado, um ser social.

Relutei em comemorar, mas fui convencida pelo meu neto, Antônio Carlos, dizendo que era um momento que a família também se regozijava em estarmos juntos e celebrar a vida. Viver é uma dádiva de Deus e agradeço muito a Ele, poder supremo, ainda nessa idade vivenciar tamanha alegria quando na linha do tempo constato que muitos parentes e amigos já partiram, as vezes sem nem dizer adeus, e sem que pudessem realizar celebrações como esta. Estou feliz e a felicidade desse momento constata-se justamente por contarmos com a presença de pessoas tão amadas e queridas. Agradeço, principalmente, aos que vieram do Rio, como meu afilhado Antônio César, e minha querida prima e comadre Edna, a amiga Vânia, que com a família se deslocou do interior a 319 quilômetros, da cidade de Monteiro, para estar aqui. Enfim a todos aqui presentes. Desejo manifestar gratidão, de modo especial, ao meu esposo Itapuan, que tem sido meu companheiro de todas as horas, dando-me força para prosseguir em frente. Aos familiares em especial aos meus filhos e suas famílias constituídas, Marielza com o genro Carlos, seus filhos Gabriel e noiva Rebekka, Antônio Carlos e esposa Ana Beatriz; Estevam e nora Andrea e suas filhas Lara e Letícia; Itapuan Filho e nora Ericka com seus filhos Luca e Gabriele. Ressalto a minha eterna gratidão a meu neto Antônio Carlos e esposa Ana Beatriz que me prestaram grande homenagem colocando o nome de sua primogênita Regina, que foi o maior presente que podia receber, pois, mesmo com a minha partida para o etéreo, ele ficará reverberando na minha bisneta. Com essas palavras encerro revelando o sentimento de gratidão por compartilharem desse evento único da minha vida, que nesta idade eu ainda encontro força e vontade de viver, se Deus assim o permitir.

A comemoração dos meus 80 anos converteu-se para mim numa prestação de contas! Do que fiz, do que faço e do que pretendo fazer. Vi nos testemunhos dados pelos meus amigos e familiares a avaliação feita das minhas ações enquanto pessoa e profissional. No dia 18 de junho, que é o dia do meu nascimento, foi celebrada uma missa na igreja Mãe dos Homens, pelo Cônego Marcelo, em ação de graças pela minha existência. Contou com a presença de todas minhas amigas de infância, de ginásio, das Lourdinas, da Universidade, de Enfermagem e do Centro da Educação. Na ocasião a professora Maria de Lourdes Henriques fez um pronunciamento dando-me de presente um poema oferecido por um amigo e colega de doutorado, hoje já falecido, Frei Marcelino, intitulado “Versos para Dra. Regina”, que havia feito para me presentear por ocasião da minha conclusão do doutorado.

Encerrando, assim, esse texto, que é o registro histórico de minha vida e do sentimento que guardo em meu ser e que fiz questão de tornar público, trazendo recordações e lembranças de passagens que vivi e experimentei durante a vida e que ficarão para o conhecimento de todos os meus descendentes e dos que ainda estarão por vir, a fim de que possam ser sabedores de quem eu fui e o que representei para a família, que nós, Itapuan e eu, construímos e que será perpetuada pelas gerações vindouras. Estou muito grata a Deus por me ter concedido viver esse momento. Para cada etapa da vida existe um sentimento e um processo na maneira de viver e ver as coisas e nenhuma é menos importante que a outra.  Faz parte do dinamismo da vida. Obrigada.

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

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