João Pessoa, 31 de julho de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Parece-me falacioso afirmar que este ou aquele poeta é um dos melhores da literatura brasileira contemporânea. Qual o leitor, qual o crítico, qual o professor que conhecem, de fato, a vasta e variada geografia da poesia brasileira contemporânea? São tantos os poetas, são tantas as regiões, são tantas as tendências, são tantas as dicções individuais que, mesmo com o auxílio tecnológico da internet, é impossível tomar conhecimento de tudo e de todos. Muito menos ler, analisar, interpretar, julgar…
Há mais de 40 anos, tento, dentro de meus limites, exercer o difícil e ingrato ofício da crítica literária militante, e, à medida que os anos vão passando, percebo que o objeto formal de estudo, isto é, os livros de poemas, se alarga e se enriquece, tornando inviável alcançarmos seus resultados concretos na singularidade de cada expressão, com seus procedimentos estilísticos, suas perspectivas temáticas, seu contrato particular entre forma e fundo.
A afirmativa a que me referi no começo deste texto só tem validade, portanto, se for honestamente hipotética. Na base do talvez, do provavelmente, do quem sabe, uma vez que não dispomos dos elementos necessários e precisos para o jogo das comparações. Por isto mesmo, quem se propõe o exercício da crítica, como eu, deve saber que navega em terreno movediço e pantanoso. Todo cuidado é pouco!
Até porque, por esses brasis à fora, como dizia um velho professor de direito de minha juventude, a poesia não para. E, em meio à grande quantidade de poetas, para selar a lógica implacável de uma das leis da dialética, a qualidade desponta e frutifica, não importa o grau de desenvolvimento cultural do ambiente, a ilusão midiática, a chancela das grandes editoras, a força dos coletivos, dos grupos, das minorias.
Dos livros que recebi ultimamente, dou testemunho deste fato e desta verdade. Quero destacar três poetas: um homem e duas mulheres, todos da região Nordeste, admirada poeticamente por nomes como Ivan Junqueira (foto), André Sefrin, Ivo Barroso, Alexei Bueno e Antônio Carlos Sechin.
Do Maranhão, folheio e rabisco os poemas de Antonio Aílton, na coletânea Cerzir (Guaratinguetá: Penalux, 2019). Livro bem composto graficamente e, ao mesmo tempo, registro de uma dicção consciente e maturada (salvo engano, este é o quarto livro do poeta), em que a disciplina verbal e o apelo rítmico do verso se coadunam perfeitamente com os ingredientes temáticos e perceptuais do poema.
O título, na sua chamada catafórica, isto é, nas suas indicações de sentido, motivação, direção e temática, parece sinalizar para um dispositivo essencial à poética do autor, talvez comprometida, em primeira mão, com a ideia de que o poema é um fazer, um artefazer, dentro do andamento das palavras, embora o dizer, na sua diversificação semântica, também se faça presente, para que o poema não se transforme apenas num artefato lúdico ou tão somente num pretexto para a configuração de um laboratório linguístico.
Dentre os muitos textos, cito o poema “Reclusa”, à página 66, como um pequeno exemplo do seu modus operandi: “todos os dias a reclusa olhava pela fresta da janela ∕ e, tecendo seu tricô, ∕ não se importava se os poetas cantam para dentro ∕ ou para fora”.
Da Bahia, leio os versos de Ana Cecília de Souza Bastos, no volume A impossível transcrição (Itabuna: Mondrongo, 2021). Matéria lírica por excelência, atenta aos filamentos afetivos, ao calor das emoções, porém, sempre mensurada, à Eliot, pelo critério da medida exata no uso dos vocábulos.
Os sentimentos afluem, mas não transbordam. Se os versos se estendem, às vezes, numa cadência prosaica, a luz do melhor lirismo se traduz no poder da síntese e da sugestão, à sombra do vazio e da beleza que caracterizam o haicai. Transcrevo o poema “Penélope”, (P. 20), como elemento probatório: “Por que desfazer ∕ no silêncio das noites ∕ a inútil tessitura dos dias?”. Com prefácio de Assis Lima e posfácio de Francisco Carvalho, Ana Cecília traz a marca dos poetas que permanecem.
Do Piauí, tenho em mãos, de Graça Vilhena, a Poesia reunida (Teresina: Fundapi, 2021). Os motivos do cotidiano, os sigilos da rotina, o olhar comovido diante das coisas, certas paradas reflexivas compõem o tecido lírico de sua poética, tudo vazado numa linguagem simples, clara, melódica, avessa a tolos toques “inventivos” e a qualquer receituário experimental.
O olhar poético desta autora da terra de H. Dobal sabe fundir, quer no plano da imagem, quer na tessitura do pensamento, sutileza e densidade, brilho e rigor, despertando, em quem a lê, aquela sensação de quem se vê, de repente, diante da descoberta do novo e do desconhecido. O poema “Oleiro” (P. 97), ilustra bem o que digo: “um dia viu ∕ no fundo da fornalha ∕ que sua vida secara ∕ entre os potes”.
Se a boa poesia brasileira persiste, estes três poetas, mesmo distante dos grandes centros editoriais, dão a sua inestimável contribuição.
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OPINIÃO - 22/11/2024