João Pessoa, 05 de agosto de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Ana Karla Lucena  é bacharela em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Servidora Pública no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Mãe. Mulher. Observadora da vida.

Eu, ilha!

Comentários: 0
publicado em 05/08/2024 ás 19h30

Tive um amigo – digo tive porque o tempo, a vida, as circunstâncias acabaram nos afastando e nunca mais nos vimos ou nos falamos – que sofreu um acidente muito grave e teve que se submeter a uma cirurgia de amputação de uma das pernas. Lembro-me da comoção geral quando todos souberam. Lamentamos por vários motivos. Ele era pai de três filhos, era ativo, precisava trabalhar para sustentar sua família, enfim, não sabíamos como tal perda iria refletir em todos esses aspectos. Foi bem difícil, mas ele conseguiu. Recuperou-se das cirurgias, conseguiu aceitar emocionalmente a perda, adaptou-se a uma prótese  e retomou a sua vida como profissional e em todas as demais áreas.

Quando ele já estava conseguindo conversar sobre o assunto, lembro-me de uma coisa que ele falava e que era bastante curiosa: ele dizia que ainda sentia a sua perna, como se não a tivesse perdido. Para nós, expectadores,  era bem difícil compreender sem conseguir ao menos nos imaginar vivendo o que ele tinha vivido. Depois, lendo sobre o assunto, descobri que a neurociência explica o fenômeno. Chamam de síndrome do membro fantasma e ela ocorre em 80% das pessoas que tiveram que sofrer algum tipo de amputação. Para mim, não fazia sentido. Afinal, como sentir uma parte do corpo que você olha e não vê mais ali? Foi então que descobri que nem tudo que faz sentido está certo.

As coisas que vemos e ouvimos parecem ser um reflexo da realidade, como se nosso corpo fosse uma câmera reproduzindo o que captura. Temos, então, a sensação de que o mundo é aquilo que vemos. Os cheiros são aqueles que sentimos. Os sons são aqueles que ouvimos. Todavia, como explicar uma pessoa sentir uma parte do corpo que não está mais lá? Só posso responder de uma forma: o que vemos, o que vimos o que sentimos, enfim, o mundo não pode ser considerado um reflexo da realidade, tudo é uma construção nossa, do nosso corpo, do nosso cérebro. E mais: somos seres distintos, diferentes uns dos outros, isto pressupõe a existência de vários mundos. Cada indivíduo trazendo consigo o seu. Sua produção, sua construção.

Minha comida preferida pode ser a pior do mundo para você. A paisagem mais bela para mim pode ser o lugar mais enfadonho para você. Mas existem aqueles que concordarão com meu paladar, com minha opinião estética sobre determinadas belezas. Assim, o que nos une em comunidade são as percepções de mundo que temos em comum. Aquilo no que cremos, as nossas ideologias políticas, nosso olfato, nosso paladar, nossas ideias.

Nossa! Quão complexa é essa ideia! Sinto o que sinto, acredito no que acredito porque sou quem eu sou. Você não sente como eu sinto porque você é você. Somos ilhas. Não há ignorantes. Há aqueles que não sentem como você, não percebem como você porque não são você. O mundo não é composto por arquipélagos. Existem ilhas solitárias. E tudo bem. Não impor opiniões, não impor percepções, crenças, ideologias ou sentimentos. Sob a perspectiva de tudo que aqui coloquei, seria cruel agir assim. Enfadonho e mesquinho. Posso te visitar na tua ilha. Me mostra tuas percepções! Te mostro as minhas. Muito mais democrático assim.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB