Vaqueiros do sol poente
Quando o vento espalhou os gravetos sobre a sombra da tarde no terreiro da fazenda, a última rés chegou ao curral. O Sol desmontava o dia, lentamente.
De cima do cavalo, em pé sobre o estribo, o Vaqueiro contou os bezerros apartados.
Pouco antes, o Vaqueiro escutou o mugido, suportou vento e sol, até avistar o boi de entralho, fujão. O animal estava por trás da serra coberta de jurema, baraúnas e xique-xiques. Foi atrás. Laçado, o garote preto estrebuchou sob a pata do cavalo. O boi foi levado para junto da boiada, já acomodada no curral.
Era entardecer com uma nesga de nuvem cinzenta que passeava pelo céu. No capão de mato a algumas braças distantes, a sinfonia dos pássaros saudava o anoitecer.
O Vaqueiro desmontou a veste grosseira e poeirenta. Guardou o gibão, o parapeito, perneiras, luvas, jaleco e chapéu. Banhou e alimentou o cavalo, que à sombra do juazeiro pernoitou.
Silencioso como os lugares ermos de onde chegou, o Vaqueiro recolheu-se aos aposentos do alpendre, com o vento morno espalhando as labaredas da lamparina colocada numa tabuinha suspensa na parede.
Repousou o espinhaço na rede. Aquietou-se. Repassou todo o dia de labuta. Até pensou na moça que tinha visto na saída da missa na capela na noite de São José.
Março corria sem chuva. Em volta, tudo seco, esturricado. O Sol poente avermelhava a planície em sua volta.
Lembrou-se da labuta diária nas caatingas, comendo carne seca de bode com farinha guardada no bornal. Bebia a água do bornal que conduzia à tiracolo.
As aguadas secaram e a terra rachada consumiu a brisa fresca na madrugada.
Ao cavalo e o gado restaram como alimento os ramos da poda da catingueira, da jurema, do angico transformados em feno. Como último alento, queimou mandacaru e xique-xique que restavam.
A vegetação esturricada é seu berço. Se criou nessa vegetação seca.
No veranico de janeiro buscava nas encostas a babugem para alimentar o rebanho. Estava salvo o que restou de rés, bodes e cabritos. Era tempo de inverno, mas as nuvens não indicavam inverno.
O Vaqueiro lembrou-se do dia de uma longa peleja para conduzir o gado de volta ao cercado de pau-a-pique. O graveto de umburana não rasgou seu rosto, mas deixou marcas invisíveis que os olhos captaram. As rosetas das esporas cintilando no topo do meio dia trouxeram lembranças do tempo de criança quando montava em cavalo-de-pau para derrubar bois imaginários.
Findou mais um dia de peleja. Em redor do juazeiro restou a paisagem desnuda, onde outrora bebia água usando o chapéu de couro como cuia.
Vaqueiro e montaria, unidos pela mesma sina. Frutos da mesma caatinga espinhenta. No emaranhado de cipós tantas vezes perseguiram rés sem medo do abismo. Os espinhos não atingem cavalo e cavaleiro devido o peitoral de couro. Atrás do boi, às vezes o cavalo mergulha sob os galhos afiados, saltando gravetos rasteiros, com o vaqueiro abraçado ao pescoço. Por onde passam os três – vaqueiro, cavalo e boi – fica a vereda aberta e os galhos quebrados.
A obra de arte do Vaqueiro se completa quando executa a pega do boi na caatinga. Este a passo lento chega à fazenda no imponente cavalo e traz amarrado pelos chifres o tourinho que não esperneia.
A vitória da labuta diária está completa. Resta a rede para repousar e a viola para dedilhar.
O Vaqueiro do Sol e o Cavalo, ambos, empunham o estandarte da Majestade do Sertão: o empoeirado Gibão.
(Dedico este texto a Antonio David pelo registro fotográfico sobre a lida dos Vaqueiros nas caatingas da Paraíba).