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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

As camisas

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publicado em 30/08/2024 ás 07h00
atualizado em 29/08/2024 ás 19h08

 

Quase sempre não prestavam. Chegavam no final do ano compradas com o dinheiro da safra de algodão. Uma muda de roupa para cada um, dizia papai. Sem luxo, o necessário, repetia.

Mãe seria a responsável pelas compras, afinal ninguém conhecia tão bem as necessidades dos filhos. Uma camisa para Leite, um vestido para Bia, para Flaviana, e um para ela, se desse.

Até que se esforçava, mas no inventário entre a precisão e o dinheiro, a prova dos nove não fechava, a não ser que mãe regateasse o que poderia comprar para si mesma.

O problema nem sempre estava em papai. Na maioria das vezes, eram os seus bolsos desnutridos de dinheiro. O plantio do algodão não feito no tempo certo, as mudas não vingadas, o inverno avaro e encrenqueiro, o preço do algodão aviltado pelos usineiros…

No ano anterior eu ganhara uma camisa azul, de “volta ao mundo”. No sol quente do alto sertão da Paraíba, o suor escorria, pingando, a camisa pregada no corpo, como se fosse uma pele nova, áspera e grudenta.

No ano em que os hormônios revolucionaram meu corpo, mãe comprou um tecido grosso, da cor de uma gema de ovo.  Deu para fazer duas camisas. Foi com uma delas que fui à festa do povoado de Areias. De todas, foi a camisa que mais odiei, afinal, vestido nela, eu parecia uma lagartixa amarela. Um lagarto feio, voz entrecortada, pele espinhenta, revoltado…

Todos os adolescentes têm os pés assentados no futuro. Esperávamos o final do ano cheios de esperança. Que a safra do algodão melhorasse, que papai abrisse com maior afinco os bolsos, que mãe acertasse a mão na escolha dos tecidos na loja de Zé Daniel…

Nada poderia piorar, ainda que a inocência dos pré-adolescentes olhasse desconfiada para um pai que já tinha a idade de um avô. Então, o olhão traiçoeiro da idade encurvou papai que se deparou, sabe-se lá de onde vinda, com a plaga do bicudo.

Tanto mato para o bicho matar a fome, mas o inseto era matreiro e ordinário. Algodão devastado, murcho como a vista de minha mãe dominada pelo glaucoma, enfeando o leito seco do Sítio Saco Sinhazinha.

Foi a última camisa comprada com o dinheiro de papai. Camisa amarela, duas. Dois anos garantidos…Será que minha mãe pensou assim?

@professorchicoleite

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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