João Pessoa, 31 de agosto de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
maispb entrevista

Dissoluções: novo livro do poeta Felipe Franco Munhoz já está nas livrarias

Comentários: 0
publicado em 31/08/2024 ás 12h18
atualizado em 31/08/2024 ás 13h05

Kubitschek Pinheiro

Foto –  Clara Vannucci

Em “Dissoluções”, o novo livro do jornalista e poeta Felipe Franco Munhoz, o autor vai além do dissolver da performance das personagens, do que é corpo sólido, líquido e urbano. Com selo da Editora Record – “Dissoluções” chega perto do cinema e do teatro e mexe com o leitor, num formato de uma narrativa ficcional e trilha sonora abundante.

A obra é recomendada por um dos mais importantes escritores portugueses da atualidade, José Luís Peixoto, autor da apresentação, e pela professora Aurora Fornoni Bernardini (USP), autoridade em estudos literários.

Dissoluções é um livro com arco narrativo que leva a uma viagem na velocidade que o leitor quiser, em que ele pode ler em voz alta, pesquisar e escutar as referências musicais mencionadas, decifrar ou não os enigmas. Aí o leitor já vira um personagem.

São dois atos – o primeiro, O amor no fim do futuro, acontece todo em São Paulo, no final de 2020, e ilumina detalhes do relacionamento entre Suposto Mefistófeles e Alma (um relacionamento que teve início no livro anterior, Lanternas ao nirvana). Esse Ato I, transcorrendo em ritmo suave, é quase inteiramente um close-up no casal.

O segundo ato tem o título de Deslocamento animal – título que dialoga com a sequência de fotos de Eadwaerd Muybridge que ilustra a capa do livro. Nesse Ato II, o leitor acompanhará a dissolução do casal, chegando a 2023 com novos personagens e novos cenários. Já os epílogos apontam para o agora ou, talvez, para um futuro próximo. Os personagens se debatem na ânsia de saber como a vida poderá continuar. Se continuar

Desde sua estreia, com o livro Mentiras (2016), Felipe Franco Munhoz vem se firmando como uma das vozes mais originais da literatura brasileira. Ele publicou também Identidades (2018). Sua estreia na Record foi com Lanternas ao nirvana (2022), que acaba de sair em audiolivro. O livro contém um texto, “Parêntesis”, que foi adaptado para um curta-metragem, dirigido por Natália Lage e com trilha sonora original de André Mehmari, e selecionado para festivais de cinema em países como Coreia do Sul, Itália, Turquia e Nepal.

Em conversa com o MaisPB, o autor que está no Fall Residency do International Writing Program, nos EUA, conta como o livro foi construído, a bela dança da capa que é uma sequência de fotografias de Eadweard Muybridge, inclusa em uma série intitulada Animal locomotion, realizada no século XIX. E muito mais.

MaisPB – Poesia e texto teatral estão juntinhos no seu livro – vamos começar por aqui?

Felipe Franco Munhoz – Tenho trabalhado nessa fusão de gêneros desde 2015, enquanto meu primeiro livro, Mentiras, habitava o prelo (foi publicado pela Nós, em 2016) – e quando comecei a escrever meu segundo livro, Identidades (que seria publicado também pela Nós, em 2018). A página em branco, desde então, tornou-se uma espécie de palco; e meu ofício, colocar a linguagem em cena. A partir da definição dessa proposta estética, escrevi Lanternas ao nirvana (Record, 2022) e Dissoluções (Record, 2024). É uma proposta que encadeia pequenos fragmentos (geralmente resolvidos nos próprios fragmentos, mas integrando narrativas maiores); uma proposta que (à exceção das rubricas) projeta vozes: tanto dos personagens quanto dos coros; que, sobretudo, procura entrelaçar forma e conteúdo. Além de outros alicerces. Digamos que tenho certa estrutura fixa arquitetada: estrutura, que repito, para ser expandida e explodida.

MaisPB – Vamos para a capa do livro – genial – parece uma sala de espelhos, uma dança que leva os corpos ao erotismo, uma delicadeza sem fim. Fala dessas imagens que se casam com a narrativa de Dissoluções?

Felipe Franco Munhoz – A dança da capa é uma sequência de fotografias de Eadweard Muybridge, inclusa em uma série intitulada Animal locomotion, realizada no século XIX. Deparei-me na Santa Maddalena Foundation, na Itália, com uma releitura de Animal locomotion, feita por Michelangelo Pistoletto: um dos quadri specchianti de Pistoletto: um dos frames de Muybridge pintado, em tonalidades pastel, sobre grande espelho, com as duas mulheres em tamanho real. O impressionante quadro de Pistoletto ficava na sala de estar de Beatrice Monti della Corte von Rezzori, a baronesa de 98 anos que é a proprietária e a alma da fundação. Eu era escritor residente na Santa Maddalena Foundation, em dezembro de 2023, e revisava Dissoluções; e olhava todos os dias para aquelas mulheres dançando, pensando que poderiam ser duas mulheres, pensando que poderia ser a mulher e seu duplo. E Dissoluções é, também, um livro de duplos; e de quase duplos, de falsos duplos. Meu primeiro impulso foi pedir à Record que a obra de Pistoletto figurasse na capa. Cheguei a conversar, ao telefone, com o editor Rodrigo Lacerda. Mas como reproduzir, na capa, o efeito de colocar o leitor-espectador diante da dança e, simultaneamente, diante de um espelho? Tarefa complexa. Comentei sobre o plano com Beatrice e ela trouxe-me alguns livros do artista italiano; assim, acabei encontrando a referência ao fotógrafo inglês. E a hipnose foi deslocada: Pistoletto–Muybridge. Decidi, então, dar ao segundo ato de Dissoluções o título Deslocamento animal; e pedi à Record, enfim, que a sequência de Muybridge estivesse na capa; e inseri, dentro do livro, uma intertextualidade específica, e discreta, com A bússola adúltera: livro que eu estava (não revisando, mas) escrevendo em meu escritório-torre do século XIV da Santa Maddalena Foundation (A bússola adúltera deve ser publicado pela editora Ars et Vita ainda em 2024). E, na rubrica derradeira de Dissoluções, adicionei um aceno a Pistoletto e uma “torre toscana do século XIV”. Ou seja: tudo vai se entrelaçando – em parte por acaso, inescapável, em parte de propósito.

MaisPB – Lendo ou quase assistindo a performance de seu livro, o vai-volta a se encontrar com o novo, jamais a modernidade tardia, mas Dissoluções está acontecendo… Como veio essa ideia naquele ano em que passamos pelas trevas da pandemia?

Felipe Franco Munhoz – Na verdade eu já elaborava fragmentos que comporiam Dissoluções antes da pandemia; já trabalhava sobre a personagem Alma. O primeiro registro da composição de Dissoluções é de agosto de 2018. Mas fiz um lockdown rigoroso entre março de 2020 e janeiro de 2021; e do período de isolamento radical, explorando principalmente o tema da pandemia, surgiu o livro Lanternas ao nirvana. Como se fosse um parêntese na produção. Em Lanternas ao nirvana, que apresenta várias hipóteses de existência no contexto pandêmico, a personagem Alma é introduzida: inicia-se ali um relacionamento amoroso entre ela e o personagem Suposto Mefistófeles (personagem que, por sua vez, fora introduzido em Identidades). A formação do casal é secundária na trama de Lanternas ao nirvana, porém: espécie de aparte – em livro que talvez seja, ou contenha em sua essência, um mosaico de apartes. Imaginei, no entanto, que desdobrar e dissolver tal relacionamento poderia render um arco de maior fôlego. A primeira cena de Dissoluções acontece, então, com o casal recém-formado, em dezembro de 2020; para fragmento a fragmento, desenrolar-se no tempo.

MaisPB – O título veio de cara ou coragem? Tipo assim, algo está se desmanchando no ar?

Felipe Franco Munhoz – Chegou a ser publicado no jornal O Estado de S. Paulo que o título seria diferente, ao ser anunciada a contratação do livro; no contrato com a editora, inclusive, consta um título diferente. Mas costumo revisar tudo até o momento final da publicação – nada está a salvo. Nada é sólido? Com sua pergunta, fiquei com vontade de reler algo de Berman.

MaisPB – O som imaginário de Tom Waits, que você sugere na página 36 é a cara de São Paulo, Nova Iorque, a cara do mundo. Seria o eco para sintonizar o leitor que gosta de música – e olha que poucos conhecem o som de Tom Waits?

Felipe Franco Munhoz – Através da trilha sonora (digamos, imaginária), eu tento criar uma atmosfera para a cena em questão. Isso acabou se tornando um dos alicerces da estrutura fixa: a trilha muito precisa, com indicação exata do trecho da música que estaria tocando em determinado momento. O jornalista e crítico Manuel da Costa Pinto sugeriu que meus livros estimulariam o leitor à participação: que o leitor é estimulado a pesquisar as referências (conhecidas ou desconhecidas) – gerando novas camadas para a leitura. Em contrapartida, o leitor pode ignorar as referências musicais e seguir adiante. São muitas perspectivas possíveis. E há, sempre, em cada livro, inúmeros livros. Na cena em que New Year’s Eve, de Tom Waits, é trilha sonora (cena de réveillon), forma-se um paralelo com o poema Berlin, de Identidades: os gestos e movimentos de Alma fazem com que Suposto Mefistófeles lembre-se dos gestos e movimentos de Nastassja?, personagem do passado. É por esse motivo que, em Dissoluções, de repente, “Entra uma reverberação pretérita de Nastassja?.”

MaisPB – Os personagens são incríveis: Alma, Júlia, Suposto Mefistófeles e o velho Sócrates, além dos virtuais – esse time já é um motivo para não largar a leitura. Aliás, Júlia e Alma são a mesma criatura?

Felipe Franco Munhoz – Ao mesmo tempo em que não enxergo Alma e Julia no papel da mesma personagem, consigo visualizar os personagens (com suas particularidades e contradições), em contraponto, habitando um grande labirinto de espelhos. E é provável que o labirinto de espelhos, afinal, seja o filtro extremo. Jorge Vicente Valentim, professor da UFSCar, foi o primeiro crítico literário a lançar a seguinte flecha em minha direção: quem é o narrador de seus livros? Para mim, os livros projetavam apenas vozes (à exceção das rubricas). Em todo caso, não acredito que minha resposta, que minha interpretação, seja definitiva: nenhuma é: se há inúmeros livros em cada livro, há inúmeras maneiras de analisarmos cada livro.

MaisPB – Vamos imaginar que seu livro vai virar filme – curta ou um longa – porque aí cabe tudo, né?

Felipe Franco Munhoz – Quem sabe? Escrevo os livros com o intuito de que virem livros. Mas não refuto rearranjos. Acontece, às vezes espontaneamente. Muitas vezes, eu mesmo adaptei os textos: para canções, em performances etc. Um trecho de Lanternas ao nirvana, Parêntesis, foi transformado em curta-metragem experimental (durante a pandemia) por Natália Lage, André Mehmari, Alexandre Lage e eu. O texto é circular: não tem começo, meio ou fim – e construímos um registro audiovisual que pode ser passado infinitamente (e passou: no CICA Museum, da Coreia do Sul, em loop, ao longo de três semanas; o corte sem loop do filme estreou no Comunicurtas, em projeção mapeada na fachada no MAPP). Do próprio Parêntesis, eu tenho feito leituras em público. Li Parêntesis na Santa Maddalena Foundation, que mencionei antes, e na Sangam House, em Bangalore, e no Freddy’s Bar & Backroom, em Nova York, e na Flipoços, em Poços de Caldas: um curioso panorama de leituras de Parêntesis vem se formando, com vários amigos, artistas que admiro de vários países, juntando-se a esse coro em loop. Já sobre Dissoluções, em manifestação espontânea, recebi há poucos dias um vídeo da cantora Tarita de Sousa: ela fez uma versão declamada-cantada da cortina de vozes que divide atos e intervalos, mesclando o som à cortina por escrito e às fotografias de Muybridge; um eco do eco, um eco do livro. Acho incrível quando acontece.

MaisPB – A chave que chega na fechadura não serve – bom demais, isso viu?

Felipe Franco Munhoz – Muito obrigado. E a que serve na fechadura, não chega. Fiz uma pequena instalação, que representasse a ideia, para fotografar e inserir no livro – aproveitando a proposta estética de fusão ilimitada de gêneros: poesia, dramaturgia, arte visual tridimensional, mas bidimensional nos limites da página. E depois de tirada a fotografia, destruí a instalação. Fiz o mesmo com Vida Verso, de Identidades. Uma instalação, mas para o livro.

MaisPB – Fiquei curioso para ler Mentiras, de 2016 – aliás, todo mundo mente né, os personagens e os seres não seres…

Felipe Franco Munhoz – Mentiras (que comecei a escrever em 2010) é o único livro que difere da proposta estética estabelecida em Identidades. Não deixa de ser, contudo, um embrião do estilo: bastante focado na forma; inteiramente em diálogos (sem narrador ou com narrador?); com três personagens que se complementam e, em certa medida, confundem-se; com a multiplicidade de pontos de vista; com intertextualidades – explícitas e implícitas – incrustadas. Até mesmo T. Waits é citado: não uma canção de Tom Waits: uma das maldições judaicas declamadas no programa de rádio Theme Time Radio Hour, de Bob Dylan.

MaisPB – Você conhece o Nordeste, a gente bronzeada, o sol na moleira?

Felipe Franco Munhoz – Já estive, turista, no Nordeste; artista, fui somente (infelizmente) uma vez: neste ano, ao Salão do Livro do Piauí. Fiz um bate-papo com o jornalista e escritor Rivanildo Feitosa. Adorei. Nunca visitei a Paraíba. Espero que aconteça em breve.

MaisPB – Lendo Dissoluções a gente que é do tempo livresco, sente logo que o livro impresso não morre nunca, né?

Felipe Franco Munhoz – Leio livros impressos, basicamente; sem fazer oposição aos inúmeros suportes que a literatura pode ocupar (ou aos quais a literatura pode se associar). Recordo-me, por exemplo, de ter visto no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, há algumas semanas, mais uma versão, em movimento, de Cidade/City/Cité, de Augusto de Campos; além de um poema-escultura de Arnaldo Antunes; além de uma instalação, ambiente com provérbios e animações, palavras e signos, de Aline Motta em colaboração com Rafael Galante. E eu não faria oposição aos inúmeros-inimagináveis suportes dos quais a literatura (e parece ridículo ressaltar, mas feita por seres humanos, não me interessam resultados provenientes de IA) poderia se valer no futuro – mas não sou mais capaz de sonhar com delírios de futuro.

Leia Também