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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Noli me tangere

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publicado em 04/09/2024 ás 07h00
atualizado em 03/09/2024 ás 18h25

No Evangelho de João, Maria Madalena vai visitar o túmulo de Jesus e o encontra vazio. Quando Jesus se aproxima dela, supondo ela ser um jardineiro, pergunta-lhe onde ele teria colocado o corpo do rabi. Quando ela consegue reconhecer Jesus, na pessoa do suposto jardineiro, ela sente-se impelida a tocá-lo. Surge daí a frase que intitula este texto – “Noli me tangere” (João, 20,16) –, que corresponde ao original grego “μή μου ἅπτου”.

Ao que me parece, apesar da correspondência entre os verbos ἅπτω e tangĕre, com o sentido de atingir, tocar, a forma latina “noli me tangere” traz um elemento a mais, qual seja o verbo nolo, significando “não querer”, na sua forma de segunda pessoa do singular do imperativo presente. A inclusão, no latim, do verbo nolo atribui outro significado, muito diferente da tradução usual como “não me toques”. Com a utilização de mais um verbo no texto da Vulgata, a tradução latina da Bíblia por São Jerônimo, no século IV de nossa era, noli me tangere passa a significar “não queiras me tocar”, o que, convenhamos, assume um significado diferente.

Jesus não faz uma proibição a Madalena de tocá-lo, por não querer ser tocado, ele faz uma advertência, no sentido de que não deve ser tocado. E o motivo é que ainda não subiu ao pai. Jesus está naquele momento como puro espírito, como energia sutil, que não pode ser tocada. Depois que ele sobe ao pai, ele volta para um último convívio com os apóstolos, em uma forma corpórea que permite ser tocado, por exemplo, por Tomé.

A que vem esta alusão à passagem bíblica do Evangelho de João, dos quatro considerados canônicos, o mais substancial? Diante de fatos muito corriqueiros no Brasil atual, que herdamos dos tempos coloniais, em que as “autoridades” eram senhores do cutelo e do baraço, lembrei-me do baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1696), o nosso primeiro poeta, genuinamente brasileiro, de nascimento e de expressão, que se vivesse hoje passaria por mais dificuldades, no embate satírico com essas “autoridades”, do que no seu tempo.

Acredito mesmo que ele não escaparia à prisão, como aconteceu, em 1694, quando um governador baiano, seu amigo, decidiu mandá-lo para Angola, até que as coisas esfriassem na Bahia, onde estava jurado de morte pelo filho de um ex-governador, desafeto duramente satirizado em seus poemas. Hoje, no mínimo, diriam que ele propagava “discurso de ódio”, quando o poeta estava usando a ironia como arma letal de correção dos costumes.

O fato é que retomando a expressão do Evangelho, podemos fazer um paralelo entre o que diz Jesus, como advertência, e o que expressam as nossas vetustas “autoridades”. Jesus está no âmbito do intocável, elas pensam estar no do intangível e do inefável: acreditam que não há como atingi-las e que nada delas se pode dizer. Do intocável pelas razões nobres da espiritualidade, chegamos ao intangível pela vaidade, soberba e prepotência.

Isto posto, voltemos a Gregório de Matos, para finalizar a nossa conversa. Tendo voltado do exílio, em Angola, na África, onde ficou um ano (1694-1695), o poeta fixa-se em Pernambuco, até a sua morte, em 1696, pois os prepotentes da Bahia, satirizados por ele, não só o queriam preso, como queriam matá-lo, por persistir uma antiga acusação contra ele, de “fundidor de mentiras”, feita pelo Braço de Prata, alcunha do governador (1682-1684) Antônio de Souza de Menezes, incomodado com as sátiras que lhe foram dirigidas. Veja-se que não há novidade alguma, com relação às acusações mentirosas de fake News…

Advogado por Coimbra, o poeta continuou a exercer a sua profissão, em Igarassu, à época cidade mais importante do que Recife, como acontecera na Cidade da Bahia, nome com que se chamava Salvador.

Ocorreu, então, de o poeta ser chamado para defender um pobre coitado, preso porque ousara – Deus meu, que ofensa, que discurso de ódio! – dirigir-se ao juiz de Igarassu, tratando-o por “Tu” e não por “Vós”.

O poeta montou a sua defesa e a expressou com a seguinte estrofe heptassilábica:

Se chamamos a El-Rei por vós

E chamamos a Deus por Tu,

Como chamaremos nós

Ao Juiz de Igarassu?

Tu e Vós ou Vós e Tu?

Simplesmente genial. A inteligência ainda pode mais do que a força.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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