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O presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba, desembargador João Benedito da Silva, chorou durante entrevista ao Programa Hora H, da TV Manaíra, ao lembrar de um episódio em que foi discriminado e vítima de preconceito racial por um colega de turma do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“Na Universidade havia eu e outra pessoa negra e tinha o preconceito. Na UFPE havia um cidadão que era parente de pessoa importante em Pernambuco e um dia, pode até ter sido por brincadeira, o professor entregou a lista de frequência e aí fizemos um círculo. Eu estava ao lado dele e ele passou para o cidadão que estava do outro lado e disse, o negro vai assinar por último. Eu nada fiz na hora, mas meus amigos fizeram. Eles pegaram a lista, juntaram-se todos e entregaram a lista dizendo, quem vai assinar primeiro é você”, relatou com olhos marejados de lágrimas e com voz embargada na conversa com o jornalista Heron Cid.
“Me emociona [falar sobre o episódio] primeiro porque que sou emotivo, mas segundo pelo gesto de solidariedade, naquela época que não esperava. Até hoje eu fico feliz por saber que isso partiu de forma voluntária de meus amigos”, lembra.
Já como juiz concursado, João Benedito relatou que estava na fila de juízes para recebimento de pagamento e o caixa exigiu, somente dele, a carteira de identidade para provar que tinha o direito ao valor. O hoje desembargador Márcio Murilo da Cunha Ramos foi testemunha do ato encarado como racismo.
“Havia um banco, que já fechou inclusive, que pagava no local de trabalho. Tinha uma sala e pagava em espécie. Eu estava na fila. Quem estava na frente recebeu o dinheiro no caixa. Quando eu fui receber, o cidadão disse, preciso da sua identidade. Estava sem o documento na hora e ele disse, sem a identidade eu não pago. Fiquei pensando, esse camarada deveria exigir a identidade de todos, mas preferiu pedir a mim porque eu era preto. Alguém ouviu e João Moura pegou meu contracheque e mostrou, atestando que eu era juiz. Márcio Murilo me disse que eu denunciasse, mas preferi não fazer”, contou.
“Alguém se dar o direito de entender que uma pessoa é inferior somente pela sua cor, é uma coisa terrível”
O papel de destaque por presidir o Tribunal de Justiça da Paraíba ao desembargador João Benedito da Silva contrasta a história de vida. Filho de agricultor da zona rural de Aliança (PE), o ex-trabalhador braçal desafiou obstáculos para subir os degraus até o andar mais alto da magistratura paraibana.
Além de dormir na escola de música por não ter como voltar para a casa na zona rural tendo que andar seis quilômetros a pé para reencontrar os pais e os sete irmãos, plantar e colher no campo, Benedito teve que lidar com o racismo estrutural pelo fato de ser negro, da faculdade até a nomeação como juiz de direito na Paraíba.
Filho de agricultor, João Benedito da Silva precisava se deslocar a seis quilômetros de casa, na maioria das vezes a pé, para estudar o antigo Ginásio, hoje conhecido como Ensino Médio. Como não tinha transporte para regressar à residência, dormia de favor numa escola de música. Foi nessa época que passou a admirar o professor de Português, José Gonçalves, que também atuava no Direito.
Os acordes que rodeava os sonhos do menino João no espaço destinado à produção musical despertaram o desejo de estudar Direito. A primeira conquista veio na aprovação para Universidade Católica de Pernambuco. Como não tinha condições de pagar as mensalidade, sequer contou à família. A persistência o colocou na lista dos aprovados no vestibular da Universidade Federal.
“Quando eu passei na federal aí eu cheguei em casa, olhei para o meu pai e disse, pai passei em Direito. Ele disse, eu não sei o que é, mas estou feliz por você”, contou.
Aquele era o primeiro passo na construção do percurso que lhe aguardava décadas à frente: sentar na cadeira mais cobiçada da Justiça Estadual. Carregar nos dedos a tinta do despacho presidencial. Na posse da presidência do Tribunal de Justiça, ele discursou: “Ainda sou o mesmo João Benedito”. Heron Cid perguntou: “Quem é esse João Benedito que não se desprende de você?”
“É uma pessoa que nunca deixa de trabalhar, que não deixa de acreditar nas pessoas de bem, de acreditar em um Deus, porque ele é quem nos conduz e ele nos traz a esperança de uma dia termos um lugar melhor aqui na terra ainda para se tiver, de termos um país melhor, pessoas que possam se respeitar e fazer com que a vida flua. Eu sou um homem de fé, se não tivesse fé, ficava difícil”, desabafa.
A fé talvez tenha sido um dos ingredientes mais fundamentais para encorajá-lo a deixar o interior em busca do diploma. Somada à confiança, mãos que puderam sustentar o caminho trilhado.
“Houve muitas mão de qualidade sem igual. Pessoas que me disseram que a vida em Recife era mais difícil, mas que iria conseguir. Eu lembro que íamos trabalhar e eu passava em frente à Faculdade de Direito, olhei e disse, vou estudar nesse local um dia. Todos ao meu redor riram”, recordou.
Apesar de tantas conquistas, ainda faltava, para João Benedito, aquela que seria a sua “Hora H”. Mal sabia que ela chamava-se Maria da Glória, a companheira de uma vida inteira.
“A Hora H da minha vida foi quando eu encontrei minha mulher. Maria da Glória era advogada de trabalhadores e eu advogado de uma empresa. Nos encontramos nos primeiros embates nas juntas de conciliação. Tempos depois os juízes começaram a desconfiar que havia um romance. Mesmo assim, mantivemos as defesas de nossos clientes. Eu tinha uma coisa comigo, de não fazer acordo no primeiro momento. E ela ficava brava porque não tinha acordo, fomos assim até o final”, reviveu.
Na década de 1980, o jurista João Benedito foi aprovado para o cargo de juiz na Paraíba. O primeiro emprego, em São José de Piranhas, Sertão da Paraíba. No quarto, apenas uma mesa para colocar os livros e uma rede de dormir.
De lá, foi transferido para Queimadas e depois para Princesa Isabel, já com os filhos pequenos. Em seguida, foi designado para Campina Grande. “Quando saímos de Princesa Isabel fomos para Campina Grande. Reunimos a família e dissemos, agora as regras são outras. Não pode andar de bicicleta sozinho. O Antônio Manoel, filho do meio disse que queria voltar para Princesa”, disse aos risos.
De Campina desembarcou em João Pessoa, onde em setembro de 2009 foi empossado como desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba.
“É como um filme. Eu imagino como eu evolui. Eu quando me formei em direito já tinha evoluído muito, mas não imaginava que poderia evoluir ainda mais. De trabalhar na Paraíba como juiz. De servir como desembargador. O juiz é um servidor e ser presidente foi uma dádiva, uma coroação”, celebra.
Veja a entrevista completa:
OPINIÃO - 22/11/2024