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Jornalista, cronista, diácono na Arquidiocese da Paraíba, integra o IHGP, a Academia Cabedelense de Letras e Artes Litorânea, API e União Brasileira de Escritores-Paraíba, tem vários publicados.

Graciliano e a religião  

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publicado em 18/09/2024 ás 07h00
atualizado em 17/09/2024 ás 19h43
O livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, contém passagens semelhantes ao que encontramos no Êxodo. Como o povo do Egito partiu pelo deserto em busca de vida nova, no Sertão do Nordeste assolado pela seca, em estio prolongado, uma família estonteada pela fome buscava terra onde possa encontrar água e pão, conforme a narrativa de Graciliano. Ele aproveitou nossos problemas sociais para fazer memória de um acontecimento bíblico de relevante sentido, a partir das leituras bíblicas.
Conhecemos pouco de Graciliano diante da grandiosidade de sua obra. Montamos seu perfil a partir de depoimentos e escritos, espalhados desde quando aportou como um dos maiores escritores nacionais.
Para falar do relacionamento do autor de Memórias do Cárcere com a religião e a espiritualidade cristã, recorro a depoimento do poeta Murilo Mendes, seu conterrâneo, para comentar algo que motivou essa abordagem.
Com prosa refinada, o poeta alagoano construiu retrato do amigo com revelações surpreendentes. Disse que Graciliano era homem caturra, independente em suas atitudes. Tinha gestos surpreendentes, pouco agradáveis.
Murilo Mendes revelou que Graciliano exercia funções no Colégio de São Bento, no Rio de Janeiro, quando o presidente Dutra colocou o Partido Comunista na ilegalidade, ao qual era filiado, mas para não constranger os monges beneditinos, solicitou desligamento do educandário. Pediram-lhe para continuar, pois, ali, era muito estimado. Concordou em ficar.
O poeta observou que o romancista de Alagoas certa vez participou de solenidade de investidura do abade do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, Dom Martinho Michler. Cerimônia demorada, com duração de pelo menos três horas. Em pé, ele acompanhou o ofício com o texto litúrgico próprio para a ocasião. Depois, como manda a tradição hospitaleira dos beneditinos, os convidados foram recepcionados com almoço no amplo refeitório, e Graciliano estava entre os convidados.
Conforme depoimento de Murilo, dias depois, em conversa descontraída, falavam sobre a solenidade dos monges beneditinos, quando Graciliano, tocado pelo ritual litúrgico que assistiu dias antes, respondeu ser, no fundo, espiritualista, “tendo aderido ao marxismo por julgá-lo a única doutrina capaz de colocar na sua justa dimensão o trabalhador brasileiro”.  Sem confessar abertamente, talvez ele admirava Jesus pelas posições deste em defesa da vida.
“Detesto a burguesia e seus partidos, detesto esses políticos safados, patifes, canalhas que só querem saber de dinheiro e nada mais”, teria respondido o romancista.
A fome tem forte identificação entre Vidas Secas e o Êxodo. No desespero silencioso, Fabiano arrasta a família em busca de alimento, que dificilmente encontra, ao contrário de José que abriu os armazéns com cereais para alimentar o povo de Jacó. Em época diferente, cada família com sua tragédia: no Egito sabiam que encontrariam alimento, no Sertão isso era uma remota perspectiva, mas nas duas situações o povo nunca perdeu a esperança.
Murilo revelou em suas memórias ter o amigo confidenciado que se no Brasil existisse partido cristão, bem organizado, certamente se filiaria nele.
O autor de São Bernardo penetrou na alma do povo, compreendendo a proximidade dos espaços da eternidade, tornou-se “espiritualista”. Acredito que esse olhar para o Transcendental começou cedo, quando morava no interior de Alagoas.
Ele buscava entender a alma humana, assim como fizeram Dostoievski, Freud, Kafka, Piradello e tantos outros que sondavam os desdobramentos da vida em suas diferentes situações.
Graciliano Ramos falava com ressalvas desse estranho relacionamento com a religião, mesmo que tivesse amigos padres. Seu primeiro livro, Caetés, teria sido redigido no silêncio da sacristia, em Viçosa.
Em Caetés e no romance São Bernardo, é clara a presença da religião nas falas de seus personagens.
A partir de alguns personagens de seus romances, sutilmente, ele atina para o transcendental. Em Vidas Secas fala diversas vezes do Rosário pendurado no pescoço de Sinhá Vitória. Neste livro encontramos muitas conotações religiosas, imagens que lembram a narrativa bíblica, muita fé na família de sertanejos. Naquele espaço inóspito, bando de arribaçãs que voam sobre a caatinga, lembra a praga dos gafanhotos citada no Êxodo.

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