João Pessoa, 30 de setembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Da varanda do meu apartamento, enxergo o verde exuberante da mata ribeirinha, em pleno bairro do Miramar. Um luxo, num país que está literalmente queimando. Mais ainda em se tratando de um núcleo urbano, numa capital. Não vejo o rio Jaguaribe, mas sei que ele está ali, a poucos passos de onde me encontro. Não o vejo agora, mas é só começar a esquentar mais que a mata recua um pouco, deixando à mostra um pedaço de sua margem esquerda. Basta uma boa chuvarada para que eu veja parte de suas águas que transbordaram, fecundando a terra em volta.
Moro na Rua Dr. Agrícola Montenegro, um pequeno trecho que fica entre a Avenida Rui Carneiro e a Avenida Presidente Epitácio Pessoa. Esse trecho, com menos de 500 metros é ainda segmentado pela rua Durval Ribeiro de Lima, com pouco mais de 50 metros. É a rua, para quem vem descendo a Rui Carneiro, em que se entra à direita, ao chegar na subestação de força da Energisa. Daí, é só seguir direto e estará na via em que moro, tendo do seu lado esquerdo a mata a que me referi no início. O fim da rua, também conhecida como “rua do Forrozão da Praia”, extinto pela pandemia, termina na Epitácio Pessoa, entre um órgão do governo e um comércio de animais de estimação.
Durmo e acordo com os pássaros – bem-te-vis, sabiás, maracanãs –; deleito-me com os voos peneirados dos carcarás, preparando os rasantes sobre as suas vítimas. Não conto quantas cigarras, gafanhotos, libélulas, grilos, tenho frequentemente salvado das garras de Mimo, o meu gato, que os vê como “brinquedinho”. Muriçocas, sim, muitas. Às vezes, aparecem em nuvens, para fazer jus ao bloco de arrasto, que tem o seu nome. Mas não incomodam mais do que as motos de escape aberto e os carros “envenenados”, que desfilam a sua imbecilidade crônica, nas vias próximas.
Por vezes, aparecem baratas, aquelas cascudas, alguns percevejos, uns besouros… Prefiro, no entanto, toda essa miríade de insetos ao desmatamento dessa beleza natural que tenho diante de mim, todos os dias, o dia todo, sem pagar um centavo sequer. E digo isso porque a mata está ameaçada.
Desde que voltamos de Coimbra, após 8 meses de ausência, que vemos o passeio, para cá e para lá, de topógrafos, teodolitos na mão, tomando notas sobre o traçado da rua e sobre a mata. O zum-zum-zum que corre ao longo da Dr. Agrícola Montenegro é que no espaço da mata será construído um condomínio. Fiquei sem entender, porque, algo me diz que não é permitido, tendo em vista que se trata de uma mata ribeirinha. Estupefação foi a minha reação inicial. Depois, percebi que, estando no Brasil, tudo é possível. Afinal, eu mesmo defini o país em que moro, e que adoro, como “o lugar em que pode, mas não pode, e não pode, mas pode”. Basta que os interesses venais se apresentem e tudo o que não era permitido passa a ser e vice-versa.
O que fazer, quando o poder público se omite e até permite que irregularidades sejam feitas? Podemos fazer mais do que protestar e denunciar o que está para acontecer? Não tenho certeza de que a informação da construção de um condomínio, no lugar que hoje é a mata, é verdadeira. O dito popular, contudo, me faz ficar com uma pulga atrás da orelha: onde há fumaça, há fogo. Afinal de contas, topógrafos com modernos teodolitos laser, não estariam apenas testando o equipamento… Alguma coisa há. Alguma coisa devemos fazer.
Já havia visto a movimentação e ouvido os comentários. Mas, hoje, a ficha caiu. No breve espaço de tempo em que fui ao supermercado e retornei, encontrei no elevador social, no local utilizado para deixar avisos aos moradores, uma espécie de prova (foto), feita por alguma criança – suponho que tenha sido, pois a letra é de criança – em que, na sua compreensão infantil sobre os danos futuros à mata, mostra mais consciência do que nós adultos. Mais sensíveis, as crianças ainda vivem longe da materialidade e da crueza diária da luta pela vida, que nos embrutece lentamente e torna banal o mal que deveria ser veementemente repudiado por todos.
Acosto-me, portanto, ao apelo da criança que, na sua inocência, fez a prova, deu as respostas certas, colocou um Dez, como nota, e deixou a lição para nós adultos: na vida, só sonhar não leva a nada. O que nos leva à realização do sonho é lutar por ele.
Fica desse episódio uma ironia inesperada: o Dr. Agrícola Montenegro, que eu não sei quem tenha sido e que empresta o nome à rua, jamais pensou que o seu nome poderia estar associado ao desmatamento, dando lugar às estruturas de concreto e ferro.
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TURISMO - 19/12/2024