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O Cine Paradiso de Monteiro era Ideal

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publicado em 01/10/2024 ás 15h54
atualizado em 01/10/2024 ás 16h05

Marcone Simões

Especial para o MaisPB

Quando assisti ao filme “Cinema Paradiso” pela primeira vez, vi, naquela pequena cidade Italiana, uma genuína cidade nossa, ou melhor explicando: aquele aglomerado urbano, de cor ocre, bem que poderia estar localizado no sertão nordestino. Apesar das diferenças arquitetônicas, aquela seria uma das pequenas cidades empoeiradas, com praças baldias, com muita gente humilde e poucos abastados, espalhadas pelo interior do Brasil. O ambiente cenográfico revela, sutilmente, a alma endurecida de um povo que, aturando a escassez e o torpor do clima quente e seco, necessita, desesperadamente, agarrar-se a alguma coisa que lhe amenize a implacável solidão e o precário destino. Aquelas ruas denunciam uma carência de prosperidade e clamam por um afago espiritual, que bem poderia ser dado pela presença de jardins e de árvores frondosas que suavizassem as duras e nuas esquinas.

​Quando vi o filme “Cinema Paradiso” pela segunda vez, na casa de uma amiga, em João Pessoa, percebi que filmes que tocam tão profundamente nosso íntimo provocam um forte impacto, quando vistos pela primeira vez, mas nosso interesse se esvai, quando sabemos o ponto exato do auge, nesse caso, o clipe dos beijos, que uma vez visto e compreendido, ficará guardado para sempre, em nossa memória, como ficam registradas nossas doces e líricas fantasias infantis. Talvez por esse motivo, durante essa sessão, à medida que a trama se desenvolvia, minha mente era fortemente invadida por um fato que me foi contado por uma distinta senhora de Monteiro – PB, que encontrei em um café da capital paraibana.

Ocorreu em uma tarde, enquanto eu sorvia a aromática bebida negra com o olhar fixo no quadro que decorava o ambiente. Fui surpreendido pela agradável voz dessa senhora que eu acabara conhecer. Ela me olhou e disse que o quadro era uma obra de sua mãe, Dona Filomena. Sorri e me levantei para olhar a obra com maior proximidade. Era um desenho bastante curioso: um piquenique de gatos, no qual vemos os bichos domésticos assumindo posturas humanas durante um festivo convescote. Tudo se passa sob uma grande árvore que sombreia um tapete de gramíneas, configurando um ambiente inteligentemente idealizado para a grande movimentação felina que se via. Essa ideia só poderia partir de uma mente muito criativa, revolucionária, de um artista mesmo! Então me dirigi a Gislaine – esse o nome dela – dizendo: “sua mãe desenhava muito bem”. Ela respondeu que sua mãe gostava de desenhar, mas não produziu muito. Disse que ela também era musicista e empresária nos anos de 1960. Ela também possuía um bar, um salão de sinuca e o único cinema da cidade de Monteiro. A essa altura, eu já tinha Informações suficientes para considerar Dona Filomena jogando no time das mulheres nordestinas de fibra e de grande valor. Como sou apaixonado e pós-graduado em Cinema, quis saber como era o cinema, como era feita a programação, quem era o projecionista, e, no meio dessa conversa animada, Gislaine me revelou que ela era a bilheteira do cinema. Até aí tudo bem, pois assim funcionam as empresas familiares, mas me disse, que tinha apenas doze anos, quando vendia os ingressos das sessões, e me revelou um detalhe de sua precoce ocupação: como a janelinha da bilheteria era alta, para atender os clientes, ela precisava subir em um banquinho, para desempenhar uma função de tamanha responsabilidade. E assim, ela conhecia o público frequentador do Cine Ideal. Falou-me que alguns clientes viam filmes quase todos os dias. Falou-me dos namorados que repetiam a sessão apenas para namorar no “escurinho do cinema”, como cantou Rita Lee. Gislaine me falou que, após a projeção do cinejornal (pequeno jornal cinematográfico que era exibido antes dos filmes), ela mantinha a bilheteria aberta por mais quinze minutos, para dar chance aos retardatários, evitando que estes perdessem a viagem, já que sempre se encontra algum conhecido, para contar o início perdido do filme. Disse-me, pausadamente e com certa emoção, que, quando ia fechar as portas, sempre se deparava com alguns meninos pobres que a esperavam, silenciosamente, do lado de fora do cinema. Os olhos deles falavam, rogavam que ela os deixasse ver o filme. Ela avaliava a lotação e a censura da idade, para, invariavelmente, liberar a entrada a todos eles. Na manhã do dia seguinte, quando ela caminhava para a escola, cruzava com meninos entretidos jogando bolinha de gude na praça, outros jogavam futebol em plena rua calçada, e, no fim da rua, avistava um grupo de meninos empinando papagaio. Durante esse percurso, ela, necessariamente, passava em frente ao Cine Ideal. Ali, um outro grupo de meninos se ocupava de fazer imitações de cenas de cowboy e de fazer gozações, dando uns aos outros apelidos tomados dos astros de Hollywood. Ela disse que continha o riso, ao passar pelos pequenos cinéfilos da Princesa do Cariri, os quais silenciavam, para lhe dar passagem em um sinal de respeito ou de gratidão. A calçada singela da porta do cinema era também uma espécie de clube dos moleques da cidade, como eram chamados, naquela época, os meninos que não tinham aula de inglês, de judô, de natação, nem passavam o tempo jogando nos “tablets”, como atualmente. Esses meninos não eram os denominados moleques de gangues. Eles eram apenas um grupo de meninos pobres que gastavam as horas de lazer, divertindo-se nas praças, nos banhos de rios, caçando passarinhos, frequentando as missas – alguns até faziam parte do grupo de escoteiros. Tinham a pele queimada pelo Sol e a língua afiada pela malícia. Tinham cheiro de suor e um olhar que transpirava uma grande sede, uma sede de consumir a vida, mesmo que fosse na pele dos heróis de outras terras e de outras realidades, que encontravam na sala do Cinema de Monteiro.

Mas como tudo na vida passa, Gislaine passou a residir em João Pessoa, frequentou a universidade e, lá mesmo, encontrou sua missão de professora. Na capital, casou e criou seus filhos. Uma noite, seu esposo chegou em casa cansado do trabalho e a encontrou arrumada e perfumada. Gislene lhe perguntou que dia era aquele. Depois de um silêncio dramático, ele respondeu: “Você está mais linda do que no dia do nosso casamento”. Era o aniversário de 25 anos do dia em que se beijaram pela primeira vez. Ela muito animada disse: “Hoje vamos jantar fora.” E lá foi o casal para a Adega do Alfredo. Pediram vinho para comemorar e, no meio de risos descontraídos, Gislene percebeu que um homem vestido de terno escuro, em uma mesa próxima à sua, mantinha os olhos fixos nela. A princípio, pensou: “Deve estar me confundindo com alguém”. Este comensal estava acompanhado por uma bela senhora, que pareceu não ter notado o olhar insistente de seu companheiro em direção à Gislene. Chegaram os pratos, e agora Gislene percebera que sequer o homem comia, sem deixar de olhar para ela. Viu que a companheira dele também a olhou. Incomodada, tentou lembrar de algum ex-aluno, e nada. Não, definitivamente nunca tinha visto aqueles dois. Chegou a sobremesa. Só naquele momento, ela pediu ajuda ao esposo, para identificar o sujeito, e, como ela esperava, ele também não o conhecia, o que reforçou seu pensamento inicial: estavam-na confundindo com outra pessoa. Assim que o garçom serviu o café, o curioso homem pôs-se em pé e, sem hesitar, foi à mesa dela, que o recebeu abrindo um sorriso polido, enquanto seu esposo o olhou com ar sério. O homem pediu licença, deu boa-noite e perguntou: “Lembra-se de mim?” Gislene respondeu: “Desculpe, não me lembro”. Ele pigarreou e, com a voz visivelmente emocionada, disse: “Eu sou um daqueles moleques que você colocava para dentro do cinema, depois que a sessão começava”. Gislene lembra que a xícara tremeu em suas mãos e que sua visão ficou turva, como ficara há 25 anos, no dia do primeiro beijo. Sentiu um líquido quente descer por sua face até encontrar seus lábios trêmulos, que apertou sem nada dizer, porque as palavras lhe fugiram. Nesse momento, as palavras não teriam serventia. Só a emoção falava.

Marcone Simões é escritor, pianista e produtor cultural. É graduado em Engenharia Civil e pós-graduação em Cinema e Televisão. Foi Professor Universitário, no Rio de Janeiro, na área de Marketing e Comunicação. É paraibano e há alguns anos escolheu João Pessoa para sua residência definitiva.

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