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Poeta, escritor e filósofo. Nasceu em Pombal no ano de 1961. Reside em João Pessoa

A festa da moagem

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publicado em 09/10/2024 ás 16h42

No Nordeste e no Sul do Brasil, as festas do trabalho, os jubileus da lavoura tinham grande e festivas alegorias. Aos arpejos bárbaros da floresta, ao rumor sacrílego que acordava os ermos, os fazendeiros, em suas casas de vivenda, faziam os cálculos sobre os proventos de suas plantações e consideravam no dia da inauguração da moagem, traçando planos alegres e realizáveis.

Em algumas regiões do Brasil, principalmente Sul e Nordeste, começava no mês de abril, alguma coisa de estranho se passava nas fazendas, desusada atividade punha em alvoroço foreiros e escravos.

A gente da redondeza, convidada ou não, dispunha-se a comparecer à festa anual agrícola do mês de maio, época em que todos os engenhos principiavam a funcionar.

Abandonando por toda a duração da moagem as suas magníficas e confortáveis moradias, alguns senhores, acompanhados por vezes da família, vinham residir nos engenhos, fiscalizando diretamente o trabalho.

Desde maio, porém, as enxadas e as foices dos escravos (Brasil colônia) lampejavam ao sol, procedendo-se à capina geral do terreno e de suas proximidades, que abrangiam o inteiro perímetro, e quadrilátero extenso ocupado pelas construções principais e rústicas da grande propriedade.

A casa de vivenda (moradia), a do engenho, os paióis e depósitos, as senzalas extensas eram caídas e limpas; a escravatura recebia timões (casaco curto e singelo) de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano; e de oito a quinze dias antes da moagem, procedia-se ao corte das canas, que chegavam em carros de bois e ficavam sob os alpendres ou em depósitos especiais.

Quem passava então pela estrada desfrutavam um espetáculo aprazível, encantava-se diante de uma paisagem larga e pitoresca, própria do nosso clima e do nosso meio, e de acordo com o desenvolvimento relativo dos nossos proprietários rurais.

Aninhada debaixo de um céu sem névoa e quente de esplendores, a sempre bela casa de moradia do fazendeiro opulento dominava em uma eminência, elegante e avarandada, sobre um terreno amplo, arborizado e varrido. A curta distância, a fábrica do açúcar levantava-se vasta, da altura de dois andares comumente, com suas compridas, com seus alpendres contornantes. Os paióis e as senzalas, em planos variáveis, acentuavam o tom característico desses núcleos agrícolas, outrora tão florescentes e hoje, já infecundos e existentes.

Pontes atravessando córregos, rebanhos e bois nas pastagens, casinhas de sapê, ranchos dispersos, e uma outra senzala de cujo teto um esteio rompente se abria em ramos e flores – eis mais ou menos um quadro das nossas antigas fazendas, monótonas até o enfado, à força de serem semelhantes.

Desde escura madrugada, entretanto, a vida nelas se reanimava, especialmente no tempo da moagem e da safra. Os escravos, saudados pelos cânticos das aves, pelo murmúrio dos rios, pelo espadanar das cascatas, surpreendiam as auroras do sol que os encontravam no eito; os carreiros seguiam à frente dos tardos bois, ao guincho dos carros; e os acantos dos negros em turmas eram acompanhados em surdina pelo cicio dos canaviais à virações da matina:

Estava na praia escrevendo

Quando o vapô atirou;

Foi os olhos mais bonitos

Que as ondias do mar levou!…

Minha senhora, me venda,

Aproveite seu dinheiro;

Depois não venha dizendo

Qu’eu fugi de cativeiro.

Eram os pobres escravos do Nordeste que carpiam as suas saudades! Era um pensamento talvez de suicídio, uma ideia de morte tarjando de luto a esplendida aquarela da natureza!…

De véspera, a casa do engenho e mais construções adornavam-se, interna e externamente, com troféus de pendões vegetais entremeados de flores selvagens, de ramagens e palmas, de festões e areadas de folhagens; no terreiro, as bandeiras, colocadas de distância em distância, flutuavam nas extremidades dos bambus flexíveis e verdes; e aqui e ali os moleques e outras crianças, saltando e brincando, olhando espantados, achusmavam em algazarra, aqueles com a camisa aberta ao peito, mostrando ao colo uma figuinha suspensa, um bentinho ou um rosário da devoção materna.

Matava-se um boi para o banquete dos senhores e alimentação dos escravos, carneiros, galinhas, etc.; incumbindo-se a dona da casa, a família do agricultor, da direção das escravas doceiras, das que arranjavam o necessário para os convidados e hóspedes. De véspera também, já se achavam na fazenda os compadres e os amigos do estimado senhor, que tinham vindo de longe com suas famílias. Os foreiros ajudavam os escravos nos preparativos, a música se achava avisada, e os foguetes, comprados na cidade, enchiam o recanto de um aposento, para a ocasião oportuna.

As modas românticas, impressionáveis e meigas, sonhavam com os primos bacharéis; os coronéis da guarda nacional conversariam sobre eleições; e as influencias locais não perderiam a vasa para a cabala, para apresentar o seu candidato no futuro pleito eleitoral.

No dia da moagem, apenas a luz da manhã estava em casa de Cristo, lá vinham convidados a cavalo, famílias em carros de bois com toldos de esteiras ou de chitão lavrado, indivíduos de toda a casta, muitos dos quais descalços, trazendo ao ombro os sapatos enfiados no ipê. Na varanda de sua habitação, o fazendeiro e a família desde muito cedo, lobrigavam os convidados que apontavam ao longe. O fazendeiro, com seu rebenque e calça de brim pardo, seu chapéu do Chile ou manilha, pondo ao lado a xícara de café, estendia a mão sobre a testa, para melhor distinguir os vultos; a mulher e as meninas, penteadas e prontas, cresciam da ponta dos pés, alongavam o pescoço, aventurando nomes, recordando apelidos. E os primeiros chegavam, os escravos tomavam os animais, as famílias apeavam-se. O fazendeiro e os seus os recebiam com gracejos e abraços, riso franco, proporcionando-lhes hospitalidade proverbial e antigas.

A cachaça é moça branca

A filha de pardo trigueiro…

Quem bebe muita cachaça

Não pode ajuntar dinheiro.

Cana verde, cana verde,

Cana do canavial;

Eu já fui mestre d’açucar,

Hoje sou oficial!

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