João Pessoa, 16 de outubro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Passei a tarde de ontem lendo Gonzaga Rodrigues. Não o cronista que já se cristalizou, entre seus pares, senhor de estilo próprio, tocado pela melodia poética no mensurar a natureza das coisas e pela visão humanística e empática com que adere ao fluxo dos acontecimentos cotidianos. Principalmente se esses acontecimentos envolvem os humilhados e ofendidos de todos os lugares e de todos os tempos.
Não. Li e reli um outro Gonzaga, talvez desconhecido de muitos. O Gonzaga leitor, e que de leitor se faz orador, ensaísta, intérprete, num conjunto de textos e paratextos que descortinam curiosa esfera de sua estatura literária. Textos que, coligidos e ordenados, podem constituir um volume dos mais interessantes como testemunho de sua natural vocação para as letras e para o jornalismo.
É na coleção da Revista da Academia Paraibana de Letras que encontro o velho cronista a esgrimir outras armas no duelo com as palavras e a exercitar o talento do autodidata face às solicitações da vida acadêmica e à solenidade formal de seus ritos ordinários, exigidos pela manutenção simbólica da imortalidade.
Apresentações, saudações, perfis, evocações, discursos, gêneros colaterais aparecem ali, no corpo das revistas, dando provas iniludíveis de que o cronista sabe, e como sabe!, conduzir outros barcos no rio perene das viagens literárias. Isso, sem contar da riqueza de suas páginas enquanto legítimas fontes de pesquisa no âmbito da história e da literatura locais.
Seus discursos acadêmicos, quer o de posse, quer os de recepção, me parecem páginas antológicas. Sem fugir aos critérios estatutários, exigidos para a consumação do panegírico, mas sem incidir no laudatório burocrático a que tantos se limitam, Gonzaga elabora perfis que fazem justiça a seus antecessores ou aos que chegam para ocupar uma cadeira na Casa de Coriolano de Medeiros.
A sua oratória, mesmo que respeite as regras da ética acadêmica, não esconde o traço subjetivo de uma linguagem só sua, no seu feitio fraseológico que alia a qualidade estética da palavra à percepção de um olhar atento à singularidade das coisas, dos fatos, das pessoas.
Destaco, sobretudo, o seu discurso de posse, “A última estação de Allyrio”, publicado no número 11 da Revista da Academia Paraibana de Letras, em setembro de 1994. Nele, deparo-me com passagens desse tipo, idiossincrática e saborosa: “ O que eu fizera para entrar na Academia de Coriolano, de Celso Mariz, de Horácio de Almeida, de José Américo, estes sim, consolidadores das nossas letras, por isso mesmo imortais? E pior ainda: como iria eu andar na rua daí em diante, a pose acadêmica arriando no primeiro grito de ‘vem cá, neguin!’”.
Ao falar do patrono, toca em aspectos essenciais de sua personalidade incomum e se mostra sagaz e arguto no exame crítico que faz de sua obra. “(…) desconfio, como simples leitor, que essa linguagem de músculos, personalíssima, barroca como quer Ascendino, não foi a expressão ideal para o seu romance. (…) O encantamento vocabular, o eruditismo de inspiração euclidiana parecem trair o autor. Aqui e ali não é Cimaldo, não é Camboim, nenhum Ururahy, mas sim o ensaísta culto, rico de sonâncias, passando para trás os seus personagens”.
Recepcionando o poeta Jomar Morais Souto, em peça de intenso poder de síntese, bem a seu modo de organizar o verbo, vai na ferida do seu estro poético, quando afirma, à página 95 da Revista da Academia Paraibana de Letras, número 13, maio de 1999: “(…) Em tudo ela tocou, a tudo que ela aspergiu, a face do homem ou a da pedra, tudo jomatizou-se. (…) Tudo o que foi por seu canto envolvido ganhou alma nova”.
Não é todo leitor que em poucas palavras consegue dizer tudo ou quase tudo. Gonzaga é um deles. Se lê, em sua crônica semanal, o formigamento do mundo, a febre rotineira dos fenômenos acontecendo, o miúdo das coisas triviais, lê, por outro lado, nesses paratextos de ocasião, a trajetória de outros, seus feitos, suas obras, seus pares, seus modelos, suas admirações, suas afinidades. Este é um outro Gonzaga. Porém, com a mesma grandeza e a mesma humanidade.
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OPINIÃO - 22/11/2024