João Pessoa, 27 de outubro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Dentre os nossos costumes populares, mais generalizados e ainda existentes no Brasil (Nordeste), um dos mais líricos e religiosamente belos em sua simplicidade são as procissões de preces, essas romarias propiciatórias empreendidas por famílias e habitantes de uma localidade, com o fim de obter do céu intervenção benéfica contra calamidade pública, que assola, circunscrita, a terra e o homem.
A nota desses costumes derivados das primitivas idades da igreja, é de ordinário vibrada nos templos pelos respectivos vigários, e daí repercute sonora e desoladora por toda uma vila, uma localidade, uma cidade.
Nos tempos da seca, quando o sol, que reanima a natureza, mata a planta e os viventes; quando os crepúsculos assemelham-se a fornalhas de cobre candente que abrasam as estradas e os campos; e a fome e a morte levantam-se das plantações que torram, das fontes sem água como órbitas vasadas, do fumo que ondula em espirais fantásticas das matas que se incendeiam, os sacerdotes e o povo refugiam-se em Deus.
Desde pela manhã, os vigários das freguesias da roça exortam os fiéis; as ladainhas, as sagradas orações à Virgem, a penitencia, serviam de intermediárias entre o criador e a criatura, no plano domínio da desesperança dos dias funestos.
Se no lugar devastado havia mais igrejas, à tarde as procissões encontravam-se seguidas de grande multidão. Os penitentes açoitavam-se; as mulheres caminhavam descalças e de cabelos soltos; as imagens tocavam-se nos templos, permanecendo ausentes de seus altares até a queda da primeira chuva.
Esses atos religiosos, essas rogações para pedir chuva, anunciados depois da leitura dos pregões pela pároco da freguesia, eram na pluralidade das vezes realizados pelo povo, que acudia espontâneo a aplacar o castigo do céu por meio da demonstrações humildes, de sacrifícios dolorosos, de rezas específicas.
E os agricultores contritos associavam-se a esses deveres, todas as condições se nivelavam diante de uma ideia que pedia perdão, que ciliava-se penitente em presença do aniquilamento progressivo que se abatia sobre a terra como um pirata que rouba e assassina à meia-noite!
No Nordeste, as preces de que falamos, além do revelo propriamente religioso, isto é, do que se passava na igreja, apresentavam saliências de característica popular, em cuja superfície plana refletiam-se os tons quentes e variados das pinturas de gênero.
No começo das secas, quando uma atmosfera de forno prenunciava a destruição, os vigários, no fim da missa em breves prédicas, preparavam o espírito de seus paroquianos para a iniciação das preces, que alguns dias mais tarde se faziam ouvir lamentosas no recinto dos templos e na extensão quase deserta das estradas.
Do púlpito, terminada a celebração do domingo ou acabada, como já foi dito, a leitura dos proclamas, muitos deles aconselhavam ao povo que saísse em procissão com as suas imagens privativas, auxiliando-o destarte nos deveres da fé, nas súplicas fecundas ao Altíssimo para a extinção do flagelo.
Então a consciência cristã, no remanso do lar, compenetrada de suas culpas e atribuindo a intensidade inextinguível da seca ao verdadeiro e provado castigo, colhia-se em si mesma, procurando atenuar tantos males com a devoção mais íntima e profundamente sincera.
A manifestação externa desse sentimento, a forma clássica debaixo da qual palpitava esse pensamento perfumado de incenso do santuário, era caprichosa e original, sobressaindo pelo maravilhoso do espetáculo, pelo fantástico da visão.
Desde logo, à beira das estradas ou no escuro das matas, descobriam-se luzes que se moviam, vultos que circulavam nas salas, sombras que trepavam em bancos, em cadeiras, pregando colchas, suspendendo arcadas de flores acima das portas.
Eram famílias que armavam as suas casas de taipa, preparavam seus andores para as preces ambulantes. No quarto, em frente à entrada, de portas abertas, os oratórios, de lamparinas acesas, sobressaíam de um fundo agaloado, semeado de estrelinhas douradas, com apanhados de fofos de paninho enlaçados de fitas. No centro das referidas salas amanheciam os pequenos andores rodeados de velas, vistosos de planejamentos bizarros coloridos, entremeados de rendas e orlados de trancelins de vários matizes. Continuamente, ao escurecer, os vizinhos e convidados enchiam as casas, e um ou outro figurante capital do cortejo vinha lá de dentro para incorporar-se aos préstitos que, sem delongas, punham-se em marcha.
E o céu era puro e límpido; nem uma nuvem branca toldava o esplendor das estrelas que brilhavam na imensidade, parecendo soltas no éter azul e cristalino. O ar abafava; as exalações dos pauis apegavam-se às vestiduras da noite; os sapos, pulando pelos caminhos, inchavam o papo amarelado, martelavam nas forjas dos brejos, nas furnas das pedras ao relento.
Por essas horas, as procissões de preces, adiantadas em seu percurso, apercebiam-se ao longe em núcleos luminosos, nas elipses de fogo avermelhado que planavam no além…
De repente um grande foco concentrava-se, subdividindo-se após e tomando direções múltiplas. Eram as procissões que se encontravam em uma curva, que paravam por instantes, apartavam-se, ao coro das rezas, dos benditos entoados pelos penitentes em trânsito.
De quando em quando, um carro de bois sulcava a estrada, sufocando nos guinchos estrídulos as vozes do religioso concerto, da piedosa serenata, da multidão campesina em suas orações populares. Depois, uma daquelas auréolas luzentes, um daqueles grupos remotos desdobrava-se em luzes isoladas, vencia a extensão, achegava-se. E o canto, interpretando o voto comum, tradicional em certas paragens à oportunidade do momento, ecoava pungente e prolongado, carregando ainda mais o terror daquelas almas em sua peregrinação lustral:
Virgem Santa dos Remédios,
Que a todos remediais,
Nós, que somos pecadores,
Cada vez pecamos mais.
Rainha de eterna glória,
Mãe de Deus, doce e clemente,
Dai-nos água que nos molhe
Dai-nos pão que nos sustente.
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Ciência e Tecnologia - 29/11/2024