João Pessoa, 30 de outubro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Toda cidade deve ter seu memorial. Não carece de ser um prédio de luxo, nem muito espaçoso, suntuoso, majestoso ou coisa que o valha. Uma casa, uma casinha qualquer, paredes comuns, talvez arejada, bem localizada, aconchegante.
Penso numa casa bem pertinho da praça principal, com janelas grandes, frente arborizada e quintal que dá para o pomar, o riacho e toda a solidão do campo. Se ficar pelos oitões da igreja ou mesmo no alto da serra, seria ainda melhor.
Ali, no seu modesto interior, dever-se-ia guardar de um tudo que pudesse servir como registro histórico do passado e constituir um como que museu da memória, um acervo tecido no gosto da preservação e no zelo sagrado das coisas que falam, das relíquias que se tornam mais preciosas com o passar do tempo. Um espaço de identidade. Um lugar de pertencimento.
Sim, porque toda cidade deve ter seu memorial.
Se tem delegacia, prefeitura, campo de futebol, igrejas evangélicas, terreiro de macumba, posto de gasolina, motel, pousada, farmácia, mercado, mercadinho, boteco, peixaria, centro espírita, lojas de conveniência, cabaré, casas suspeitas, grupo escolar, colégios públicos e particulares, por que não ter a sua casa da memória?
A memória talvez seja o mais delicado patrimônio de uma comunidade. Cidade sem memória é cidade morta. Povo sem memória é povo sem cidadania. Sem memória, a imaginação fenece, a percepção encurta, a linguagem atrofia.
Penando nisso, reservei um cantinho especial para sonhar com a casa da memória de minha velha, austera e inesquecível Comarca, e, decerto, estimular tal empreendimento por outros sítios e outras praças. Gosto de dividir meus sonhos com o outro e sei que toda memória individual é também memória coletiva.
Era para estar lá, logo na entrada, se jardim tivesse, uma pedra secular, simétrica, clara, perfeita, aureolada com a magia do para sempre. Quem sabe, um pé de aroeira, madeira de lei, eficaz utensílio da farmacopeia popular, com suas veras crendices e sábias superstições.
Vejo, na sala, uma coleção de fotos dos mais antigos, legendadas com informações essenciais. Também fotos antigas da cidade, quer no anonimato de seus dias cinzentos, quer nas várias efemérides, sagradas ou profanas.
Foto dos prefeitos, dos juízes, dos delegados; fotos dos padres, das beatas, dos coroinhas; fotos dos comerciantes e dos criadores de gado; fotos dos vaqueiros, dos cavalos, das vaquejadas; fotos dos feirantes, dos pedintes, dos loucos, dos bêbados, dos tipos esquisitos; fotos das professoras, dos barbeiros, das rezadeiras, dos coveiros, dos suicidas, dos desaparecidos. Fotos e mais fotos para que o mundo ganhe consistência e se revele.
Uma dessas fotos me chama muito a atenção. A do Cruzeiro, nas vizinhanças da Pedra do Sino, construído, ali, pela fé dos padres holandeses. Gosto também daquela que registra a cheia do riacho nos raros invernos. Lembra-me a força de Zé de Vó, atravessando as águas e levando, nos braços, os que vinham das compras em campina Grande.
Há, ainda, uma foto singular, eivada de íntimas recordações. A do Bar de Biu Borges, nos anos 60. A sinuca, o bilhar, a cerveja antártica, os boêmios deixando-se embalar pela voz de Nelson Gonçalves, Waldick Soriano, Ângela Maria, com seus “trezentos desejos presos e seus trinta mil sonhos frustrados”.
A tuba, instrumento do velho Zuza, a camisa 10 do Esporte Clube Aroeirense, que Mané de Justo vestia; o gamão de Daniel, aquela lança-perfume, o vestido da rainha do Carnaval de 1968, modelos de ingresso dos bailes do clube municipal, convites de casamento, números de jornais de festa e tantas outras coisas mais que denunciam aquele sopro de vida de que fala o poeta.
No quarto, à direita, uma seção de brinquedos, distribuída em suas especificidades e cuidada ao calor da fantasia. Cavalos de pau, bois de osso, piões, bolas de meia, carrinhos de madeira, baladeiras, caixas de cinema, soldadinhos de chumbo, dados, bozós, velocípedes, canivetes, seixos e tudo o mais que brota da invenção milenar da sensibilidade infantil.
No quarto à esquerda, vejo os livros dos poetas e escritores de minha terra, a compor uma pequena biblioteca. As peças de seu rico artesanato enfeitam as paredes. As receitas de cozinha ficam à disposição em redomas de vidro. Aqui e ali, pinga uma gota de sangue da história. A arrumação do produto estético supera o caos da barbárie.
A casa da memória nada mais é que um microcosmo histórico e cultural. Uma espécie de close no tempo. Uma fotografia três por quatro na carteira de identidade do município. Por isto, considero crime, burrice, ignorância, absurdo, uma cidade não ter o seu memorial.
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OPINIÃO - 30/10/2024