João Pessoa, 01 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Os olhos afogueados de Cascalho

Comentários: 0
publicado em 01/11/2024 ás 07h04

Quando ouviu os gritos endiabrados de Cascalho, Minervina recolheu os olhos que estavam deitados no horizonte e temeu. Antes, quis pensar em si mesma, mas era uma péssima hora para cuidar da sua vida, cheia de assombros e queixumes.

Como havia algo mais urgente para fazer, se levantou e, em passos largos, cruzou a porta da sala, foi ao pote, tomou uma caneca d’água, cuspiu no chão. A catinga de feijão queimado penetrou as suas narinas. Benzeu-se. Que droga! O que o peste ruim iria comer?

Merda! —Pensou Minervina, mas logo recobrou o sentido e se pôs a pensar em algo que pudesse enganar a barriga do porcalhão.

Por um segundo, seus pensamentos pararam, mas o zumbido do ouvido voltou. Sentiu o coração se contrair, as veias das têmporas se agitaram, as pupilas dos olhos pareceram saltar das calotas, uma tonelada de raiva avançou sobre a sua alma e a consolou.

E consolada, acalmou-se. Cascalho já entrara, mas caíra no canto do quarto. Resmungava e, de vez em quando, tentava se levantar. Mijou-se nas calças. A garrafa de aguardente quebrara. O caco do vidro enterrado no pé direito sorriu, mas Minervina, envergonhada dos seus pensamentos, não retribuiu tamanha afoiteza.

Que merda é essa, Minervina? Não fez minha comida, sua escrota?

Minervina conhecia o destempero do marido, por isso apressou o passo, pegou um prato fundo, encheu de farinha, quebrou dois ovos e mexeu tudo. No jardim, o pé de pimenta malagueta, que pareceu aumentar de tamanho, tossiu.

Cascalho continuava sua ladainha:

A comida, puta velha!

Sorrindo, discretamente, Minervina cuspiu, cuspiu e cuspiu dentro do prato, mas a raiva dela, ainda que lhe acalmasse o juízo, exigiu outras providências. Três pimentas malaguetas madurinhas. Bem amassadas, uma delícia para o bostão comer.

O Sol morria. Minervina voltou à calçada. Não quis pôr os olhos no horizonte. Pensou em si mesma: quem era aquela mulher mirradinha, sentada em um tamborete duro de três pernas? No quarto, Cascalho, com os olhos afogueados, choramingava a sua sina como uma cachorra vadia.

@professorchicoleite

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

Leia Também