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Poeta, escritor e filósofo. Nasceu em Pombal no ano de 1961. Reside em João Pessoa

ANA PAMPLONA, A SANTEIRA

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publicado em 04/11/2024 ás 08h37
atualizado em 04/11/2024 ás 18h19

“A arte santeira é a maior e mais representativa manifestação de religiosidade da cultura popular sertaneja e nordestina brasileira. Os artesãos conseguem entalhar na madeira vivências e experiências rurais e/ou urbanas, através de imagens dos santos em forma de Cristo, Nossa Senhora, anjos e outros santos em estilo ou inspirados na arte barroca”.

A prática de fazer santos ou confeccionar símbolos religiosos do catolicismo com a finalidade de atender necessidades locais de devoção remonta aos tempos coloniais no Brasil. A depender das possibilidades e circunstâncias de cada lugar e época, predominavam determinadas técnicas e materiais na execução dessa prática cultural, a exemplo da modelagem do barro, da talha da madeira ou pedra. A produção de artefatos religiosos voltada ao mercado não é algo novo, principalmente em localidades formadas por polos devocionais, locais de peregrinação e regiões turísticas. Em diversas partes do país, a atividade de santeiro se constituiu como ofício específico ou para atender a demandas eventuais da comunidade. Foi assim que importantes núcleos de produção santeira se estabeleceram no período colonial.

Desde fins do século XVII, a circulação de artefatos religiosos no sertão da Parahyba foi o reflexo da presença do cristianismo durante o povoamento da capitania de Nossa Senhora das Neves. Escapulários, rosários, santinhos de pequenas dimensões e oratórios de viagem, portáteis, foram usados desde os primeiros vaqueiros na mediação com as esferas do sagrado durante a missão de formar os currais régios. Com o passar do tempo, em função de uma organização socioeconômica mais complexa, os devotos desse território em expansão passam a demandar dos artesãos locais o fornecimento das imagens de santos. Porém, era comum, sobretudo, que se fizesse a troca desse tipo de imagem entre os devotos, uma forma de manter e renovar o espaço de oração dentro do ambiente doméstico. As imagens e outros objetos devocionais eram presença constante nas casas rurais do sertão paraibano, sendo abrigadas inicialmente nos oratórios móveis, depois dispostas no “quarto de santo” ou em capelas. O quarto de santo era o cômodo destinado aos rituais de devoção doméstica, estando situado no alpendre ou na sala da casa da fazenda.

Ana Maria Pires Pamplona, era agricultora e artesã, nascida em 1900, sítio Jerimum, município de São João do Rio do Peixe, Estado da Paraíba e falecida no ano de 1984, no mesmo município, ao 84 anos de idade.

O pesquisador Roberto Emerson Benjamim, fala da seguinte forma de Ana Pamplona.

“A imaginária era uma sertaneja forte, pele e olhos claros. Nasceu com o século e casou tão cedo que teve a desdita de enterrar o marido, filhos, netos e bisnetos – estes, os anjos de Manoel como contava com naturalidade e conformismo. Conversava muito quando ficava à vontade e lhe prestavam atenção. Para todas as doenças, tinha ervas em seu jardim, mas não tinha garrafadas nem mezinhas. Não se considerava curandeira, embora não se negasse a fornecer as plantas às pessoas que lhe procurassem.

Fazia bichinhos de pano e bordava enquanto a vista permitiu. Preparava flores de tecido, massa, laminados plásticos e em lata – capelas de noiva e coroas para enterros. Nos santos, começou restaurando imagens velhas, de madeira e gesso, que apareciam; retocava, também, registros e cromos, depois começou a fazer as suas próprias imagens”.

Pedaços de faca, cacos de vidro, canivete, serrote, pregos, pincéis improvisados eram os seus instrumentos de trabalho, espalhados junto a latinhas de tinta industrial, pedaços de caixote e tocos de umburana, tudo em cima ou ao redor da esteira onde se sentava para criar os seus santos.

Todas as cores que faltavam à paisagem quase monocromática do sertão seco parecia que haviam se recolhido àquela casinha onde Ana Pamplona as espalhava na sua obra, como se compensasse a natureza. Lapinhas floridas, Santanas alaranjadas, Marias de mantos azuis estrelados ou floridos, túnicas verde-claras salpicadas de florzinhas encarnadas…

Esta “primavera sertaneja” parecia, à primeira vista, meramente decorativa. Todavia, a observação em detalhe levava a outra conclusão: Ana Pamplona tirava partido da pintura para obter soluções próprias e variadas a fim de superar a carência das dimensões da madeira e do instrumental com que trabalhava. Sempre que os tocos da umburana impediam as soluções escultóricas e não sendo viável um acréscimo, a figura era completada através da pintura.

Ao fazer várias imagens de uma mesma inovação de Maria, o Menino podia vir esculpido no mesmo bloco, ou constituir uma peça solta, ou ser entalhado em baixo-relevo, ou, ainda, simplesmente vir pintado. O mesmo ocorria com o carneirinho de São João ou o cachorro de São Domingos. A opção pela solução através da pintura era frequente em relação aos pés das imagens, quando não encontravam espaço no bloco de madeira.

A artesã, fiel a uma velha distinção entre o profano e o sagrado, vendia as suas imagens (porque não foram bentas)”.

Tendo chegado ao Brasil através dos europeus, as imagens dos santos – expressões plásticas carregadas de contribuições das raízes populares de sua terra, santificadas pela religiosidade católica – integram-se, como vários outros elementos, ao processo colonizador, desempenhando seu papel na transmissão dos saberes do além-mar. Missões e bandeiras, em suas ações de catequese e desbravamento, assim como a organização social subsequente – no exercício da supremacia de seus valores – ignoraram, como outro valor, o canto do pássaro nativo, o rufar do tambor negro, a linguagem da emergente população brasileira. Nesse contexto, como consequência, o apoio e estímulo seriam sistematicamente canalizados para expressões que tivessem, como ponto de referência, os valores dominantes, o que, aliando força e persuasiva metodologia, viria por sua vez criar a aceitação desses modelos como forma viável de sobrevivência.

A população, encaminhada à ordem estabelecida e à religiosidade católica, receptora de tantos e tão contraditórios valores, passou a ter a imagem do santo como motivo de respeito e devoção. O desejo de rezar, de pedir a Deus e aos santos o remédio para suas aflições, junto à dificuldade de locomoção até às capelas dos vilarejos, teria levado alguns devotos a improvisarem as primeiras imagens para seus oratórios caseiros. Outros estimulados pelo convívio das ordens religiosas, foram levados ao exercício de uma atividade integrada à ação missionária. Surgia assim no Brasil um novo artífice – o imaginário, como eles mesmos se denominavam -, de início atendendo a devoção familiar para, com o tempo, ampliar sua clientela. Em singelo artesanato, utilizando a matéria-prima mais próxima e adequada aos seus objetivos – quase sempre a imburana, madeira boa de corte -, o santeiro, munido de improvisados instrumentos, procura reproduzir, com a maior precisão, o difundido modelo. Na limitação do espaço imposta pelas circunstâncias, ele desenvolve uma linha de produção artística mais informe, comprometida com a opção de refletir o “belo”.

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