João Pessoa, 06 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Sou um homem simples, comum, em paz com a prática dos atos ordinários da vida. Não me digo casado, cotidiano e tributável, porque não me vejo à altura da persona lírica do poema de Fernando Pessoa.
Gosto das coisas banais. Não cultivo sonhos megalomaníacos. Tenho pouco dinheiro. Gasto mais do que tenho, mas não devo nada a ninguém. Adoro bodega de bairro. Amo boteco de esquina, e não fujo a uma discussão, se o assunto é futebol, mulher, religião.
Vejam bem. Tudo isso é para dizer simplesmente que ganhei, um dia, de um velho amigo, um belo e aguerrido galo-de-campina. Era domingo e meu domingo se iluminou como nunca. (Meus domingos são sempre meio nebulosos!). Meu amigo nem sabe o bem que me fez.
Um galo-de -campina não é só um pássaro do agreste, dividido entre as cores vermelha, preta e branca. É um fenômeno ecológico, uma rima perfeita, uma imagem que nem T. S. Eliot conseguiu consumar na Terra desolada. Enfim, um poema pleno, em pleno voo.
Se cantar de corrida ou de açoite, me fará feliz. Se não cantar, pois galo de campina é pássaro misterioso e cheio de dengues e reimas, me afagará, no entanto, com o aroma de suas cores. Afinal, o silêncio dos pássaros – e o galo de campina não foge à regra – contém a plumagem de uma música secreta.
Gosto muito de espiar as coisas. Bichos, animais, insetos, o pulsar da vida, certos detalhes que piscam nos olhos das mulheres bonitas, o rosto da solidão dos que são naturalmente desesperados, os humilhados e ofendidos que suam para ganhar o pão.
Pois bem. Possuir um galo-de -campina não é para qualquer um. O Movimento Verde o condenaria, o IBAMA o proibiria, a Justiça não o aceitaria integrado à esfera estreita e contida de uma gaiola. Mesmo que fosse uma gaiola larga e dourada, um pequenino palácio de cristal.
Penso, porém, libertando as asas da fantasia, que não há nada mais sedutor que a prática de um crime inafiançável, do que ser apenado por uma paixão desvairada, por um comportamento insólito, mas, em certo sentido, dotado de alguma substância ética e de algum elemento belo e delicado. Sobretudo se o galo já é de gaiola. Se sua gaiola já tem a sagração de um templo. Galo desse tipo nunca mais pode viver solto, sob pena de não saber se alimentar, se defender das feras acesas do mundo civilizado.
Sofisma? Não. Cultura. Ou seja, esse bracejar para não naufragar nos maremotos da vida, se ouso me socorrer de uma esplêndida imagem do genial Ortega Y Gasset.
É claro que o narrado aqui não se coaduna com os predicados da veracidade. É apenas o lúdico florear da verossimilhança. Ou, em outra clave, o doce exercício da imaginação poética, assim como a carícia das coisas memoráveis.
De fato, já ganhei um galo-de -campina dessa estirpe rara. Mas, hoje já não experimento o prazer especial de criar essa ave tão soberba no porte e na beleza. Isso seria crime ambiental. E crime é crime. Por isso, só convivo, hoje, com belgas, pintagois ou outros pássaros de cativeiro que a lei protege e permite.
Mas amo os galos-de-ampina, assim como amo os azulões e os canários da terra. Se não os crio nesses tempos de sustentabilidade, nada me impede, no entanto, de cultivá-los no viveiro interior da crônica e da poesia, imaginando enredos que me alimentem a recordação.
(Em tempo: a coluna de hoje é dedicada ao amigo, professor e escritor Luís Augusto Paiva, que também ama os pássaros).
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OPINIÃO - 22/11/2024