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Kubitschek Pinheiro – MaisPB
O escritor paulista Ubiratan Muarrek está lançando seu novo livro, uma peça tragicômica “Meio do Céu”, com selo Assírio & Alvim. O lançamento já aconteceu em São Paulo, no Rio de Janeiro e próximo dia 26 em Lisboa, Livraria da Travessa portuguesa).
O obra de Muarrek desvela muitos dilemas contemporâneos entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno, o lado de lá e o lado de cá, um Brasil despedaçado. Seu livro chega às prateleiras depois de “Corrida do Membro” (Objetiva, 2007) e “Um Nazista em Copacabana” (Rocco, 2016), semifinalista do Prêmio Oceanos.
“Meio do Céu” nos leva para o relato, o cotidiano, de um dia na vida de uma família de pernambucanos que mora na Inglaterra, dentro do espírito do teatro clássico de Molière – castigat ridendo mores, isto é, castiga os costumes rindo, com a roupagem do absurdo de Kafka e Samuel Beckett. É uma obra de conhecimento.
O cenário é uma Londres caótica, no dia 25 de julho de 2000, quando o então célebre avião supersônico de passageiros Concorde, voo 4590, explodiu no ar matando mais de 100 passageiros. Enquanto isso, duas amigas brasileiras, Sofitel e Greta, uma negra e uma branca, ambas vindas de um Recife assombrado pela escravidão e com um passado em comum, se encontram num parque na metrópole inglesa e travam um embate sobre acontecimentos que marcaram as suas vidas. Mas isso é só o começo.
Quem é Ubiratan Muarrek
Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em Mídia e Comunicação pela London School of Economics, na Inglaterra, e em dramaturgia pelo Célia Helena (São Paulo), Ubiratan Muarrek é escritor, jornalista, produtor executivo de cinema e roteirista em desenvolvimento, já envolvido com filmes e documentários. Na sua carreira literária, Muareek tornou-se conhecido pelos elementos de drama e tragicomédia, presentes em seu romance de estreia Corrida do Membro (Objetiva, 2007), e, novamente, na obra Um Nazista em Copacabana (Rocco, 2016), que esteve entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos de 2017.
Em conversa com o MaisPB, Muareek conta detalhes do livro e fala da sua predileção por Kafka e Samuel Beckett, e muito mais
MaisPB – Bem oportuna a peça tragicômica “Meio do Céu”, onde cá estamos num Brasil antigo, que vez em quando tentar colocar o pé na modernidade, mas o Brasil não lava o pé, né, Ubiratan?
Ubiratan Muarrek – O Brasil tenta. Mas os problemas são estruturais, sistêmicos. Como ficar impune a essa concentração de renda e poder absurda? A travessia é imensa, e por mais que algumas frentes saiam em disparada – como a conexão digital, por exemplo -, os pés de barro insistem em permanecer. O contraste é a nossa sina. O caminho parece ser assumir isso, radicalizar isso, extravasar na dialética, e continuar.
MaisPB- Aliás, você disse que tem a certeza de que seu livro não será encenado. Quem sabe, né?
Ubiratan Muarrek – Sim, quem sabe. Tenho ouvido umas coisas bem promissoras nesse sentido. Mas, sinceramente, isso não me importa. Escolhi radicalizar a dramaturgia, que já estava presente nos meus romances, para abrir novos caminhos para minha literatura. O teatro me ofereceu um ferramental extraordinário, tecido ao longo de séculos, além do senso de fazer algo compartilhado e coletivo, bem diferente dessa solidão inerente ao romance, desse eu monótono. E eu queria também me sentir próximo dos meus heróis literários, a maioria deles dramaturgos. Fiz um drama para ser lido, antes de ser encenado, e estou muito feliz de poder oferecê-lo aos leitores, para muitos uma experiência completamente nova e, eu espero, fascinante, como acontece comigo.
MaisPB – No livro, na peça, a gente se identifica na hora, com essa família de pernambucanos na Inglaterra, num espetáculo teatro que de Molière, o tenebroso Kafka e suavidade de Samuel Beckett. Vamos falar sobre isso?
Ubiratan Muarrek –Ouvir que as pessoas se identificam com meus recifenses me alegra muito. Isso ocorre, a meu ver, quando as personagens embutem uma verdade. É esse senso de humanidade, difícil de conseguir na composição deles, que gera a identificação. Quanto a Molière, Kafka e Beckett, reitero minha escolha pelo tragicômico. Kafka ria muito quando lia seus textos em público. Beckett, dizem, se inspirou nos Irmãos Marx! No entanto, o cômico é tido como uma coisa menor em literatura – no Brasil, então, nem se fala. Todo mundo aqui se leva a sério demais nessa área. O que tem de romance “importante” por aí não é brincadeira! Enquanto isso, o povo se diverte com o ridículo da política. As coisas me parecem invertidas. Disso faço minha literatura.
MaisPB – Seria bom se a gente pudesse realizar o evento aqui, em João Pessoa. Você conhece a Paraíba?
Ubiratan Muarrek – Infelizmente, não, o que é imperdoável. Adoraria ir a um evento aí. Mas veja, eu conheço Zé da Luz, que é de Itabaiana, certo? E dei a ele a epígrafe maravilhosa do meu livro. Se juntim nois dois morasse, Se juntim nois dois drumisse… é lindo demais isso!
MaisPB – O cenário de “Meio do Céu” é Londres, com os assombros do Concorde voo 4590 e logo começa a cena do encontro das pernambucanas Sofitel e Greta (nomes que fogem do nosso cotidiano) ok, tudo bem, mas esses personagens norteiam o passado mais cruel do Brasil, o da escravidão – até o pernambucano Joaquim Nabuco, disse que a escravidão permanecerá por muito como uma caraterística do Brasil. Bora falar sobre o cenário e a luta que continua?
Ubiratan Muarrek – Se você me pedir para citar uma frase que tenha marcado minha vida, que tenha dado sentido à minha experiência de tempo e lugar, resumindo minha sensação de estar em um mundo habitado por outras pessoas, eu diria essa frase do Nabuco: o Brasil teve 300 anos de escravidão; vai precisar de mais 300 para consertar a obra da escravidão. Em que ponto estamos mesmo nessa travessia? Qual é nosso meio do céu como nação?
MaisPB- “Corrida do Membro” (Objetiva, 2007) e “Um Nazista em Copacabana” (Rocco, 2016): Poderia falar desses livros anteriores?
Ubiratan Muarrek – Corrida do Membro é a dor e a delícia do primeiro romance, onde tudo é – e deve – ser permitido. Se você não se joga de cabeça no primeiro, vai se jogar quando? Gosto também de demolir a ideia do “lugar de fala”, como faço nele, uma coisa que esteticamente já era ridícula, em termos literários, em 2007, quando foi lançado. Lendo hoje, duvido que haja algo mais politicamente incorreto do que esse livro, pode apostar – seria um cancelamento épico, maravilhoso! Já Um Nazista em Copacabana foi uma tentativa de explorar o romance caudaloso, o romance que se propõe a fazer o grande painel social de uma época e um país, o que, então, me parecia ser o verdadeiro romance, aquela levada caudalosa, fluida, de muitas páginas, a sensação de embarcar num transatlântico, e adorar ser conduzido em uma travessia de oito, dez horas. Bem, em seis anos de escrita, consegui 400 páginas. Eu queria 500, mas não tive fôlego para tanto. Mas pelo menos não produzi mais uma novelinha disfarçada!
MaisPB – Como o Movimento Armorial de Ariano Suassuna entram nesse livro?
Ubiratan Muarrek – Há um exagero nessa leitura. O que há são ecos do Auto da Compadecida, particularmente na relação entre Greta e Sofitel, e uma cena explícita de um certo trágico nordestino, onde surge o arraigado de uma, digamos, espiritualidade ancestral – basicamente um delírio de Isaías, outro dos personagens, a partir de uma cena bíblica no livro de Josué. Mas veja, é muito difícil representar qualquer coisa relativa ao Nordeste sem ecos desse movimento, tamanha sua força e grandeza.
MaisPB- Vamos falar da genial foto da capa de alemão Wolfgang Tillmans?
Ubiratan Muarrek – Vamos. Meio do Céu é um projeto que nasceu quando morei em Londres, em 1998-2000, e eu via todos os dias o Concorde descendo, sobre minha cabeça, em direção ao aeroporto, que ficava a algumas milhas de onde eu morava, a oeste. É impressionante: quando o Concorde desce, a cidade para. Voltei para o Brasil, contra a minha vontade, no dia em que ele caiu, 26 de julho de 2000, em Paris. A ideia da peça foi se formando ao longo dos anos e, a certa altura, me deparei com essa série de fotografias do Tillmans, que tem umas 60 fotos do Concorde pousando ou decolando desde Londres. Essas fotos me acompanharam por todo o processo de escrita, a simplicidade e beleza delas são extraordinárias, elas captam a luz e o espírito de Londres de uma forma impressionante. Na hora de fazer a capa, tentamos algumas alternativas, sem sucesso algum. Arte não se emula, não se copia, e mesmo a, digamos, citação criativa, é sempre muito menor do que o trabalho original. Arriscamos então falar com o Tillmans, que curtiu a ideia do livro com sua foto na capa, que traduz perfeitamente o livro. E a capa está aí.
MaisPB
OPINIÃO - 22/11/2024