João Pessoa, 12 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Certo dia, recebi em meu gabinete um Procurador da República para despachar um processo. Após receber o memorial escrito com suas razões, passamos a conversar amenidades. Em dado momento, ele viu minha cidadania paraibana pendurada na parede e, perguntando-me sobre minhas origens, falei que era “papajerimum”, nascida e criada em Natal. Nesse momento, ele lembrou da figura de Luís da Câmara Cascudo, escritor natalense que escreveu uma obra inteira sobre “A Rede de Dormir”.
Curiosa como sou, fui procurar a obra para ler!
Luís da Câmara Cascudo, assim chamado, foi um natalense célebre, que abandonou os estudos de medicina para se formar em direito pela UFPE e tornar-se jornalista. Além de grande escritor, foi o maior pesquisador do folclore brasileiro, elaborando o Dicionário do Folclore Brasileiro em 1954, obra que detalha a riqueza da identidade brasileira, formada pela mistura de índios, brancos e negros.
Escreveu cerca de 170 obras. Em 1991, cinco anos após seu falecimento, a Casa da Moeda o homenageou estampando sua face na nota de 50.000 cruzeiros. Suas obras são citadas até no exterior, sendo um dos poucos brasileiros a ter livros arquivados na biblioteca de Harvard.
A rede que em tupi-guarani, significa “linha”, “fio” e, mais recorrente, “aquilo em que se dorme”, foi registrada pela primeira vez por volta de 1500 D.C., na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, D. Manuel I, o Venturoso, que dizia: “Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam.”
Mais la na frente, Pero Magalhães Gandavo, no “Tratado da Terra do Brasil, escreveu que “a maior parte das cama do Brasil eram redes, as quais armam numa casa com duas cordas e lançam-se nela para dormir. Esse costume tomaram dos índios da terra”.
Já no prefácio de seu livro, Cascudo citava os versos de Casimiro de Abreu ao fazer menção à rede, dizendo que a poesia valorizava as coisas vulgares:
Nos galhos da sapucaia
Nas iras do sol ardente
Sobre um solo de açucenas,
Suspensa a rede de penas
Ali, nas tardes amenas
Se embala o índio indolente.
Jan Van der Straet, artista flamengo, desenhou a chegada de Américo Vespúcio ao Novo Mundo, cuja alegoria da América está representada pelo corpo de uma índia que repousa sobre uma rede.
No século XX, o historiador Cascudo relembra alguns fatos pitorescos sobre a rede, como o caso do governador Pedro Velho, que, vivendo no Rio de Janeiro, no Grande Hotel da Lapa, mandou furar as paredes para colocar os armadores para sua rede. Nessa rede, Rui Barbosa deitou-se sorridente, assim como Pinheiro Machado (senador pelo RJ), que, deitado na rede, enrolava fumo em palha de milho.
E segue o historiador observando que a rede era um presente valioso, oferecido aos estrangeiros curiosos da nossa etnografia, que tinham a intenção de transformar esse produto em exportação, como o café, o algodão e o samba. A rede, no entanto, é impregnada de nossos hábitos, sendo acolhedora, companheira, compreensiva e capaz de resguardar tanto os caprichos de nossa fadiga quanto as novidades imprevistas de nosso sossego.
Mais adiante, ele relata que a rede não servia apenas para dormir, mas também para viajar, costume observado em Salvador, onde, no Brasil colonial, os índios se revezavam para transportar os jesuítas. Contudo, a rede começou a sofrer um declínio a partir de 1830, com a moda das camas vindas da França.
O fato é que, mesmo tendo perdido parte de sua identidade indígena — pois já não é mais feita de cipó e trepadeiras, mas sim de algodão e com varandas feitas pelas mulheres do gentio, ou mesmo de tecido compacto usado pelas mulheres portuguesas — a rede é um objeto de descanso, relaxamento e deleite, que adorna e decora os alpendres das fazendas de ricos e pobres, bem como as casas de praia por todo o Brasil.
É um objeto disputadíssimo após uma “carraspana”, para ver quem cai em sono profundo depois de se perder no deleite dos destilados e fermentados alcoólicos, que retiram a consciência dos que não os consomem com moderação.
É também lugar do boi-boi da cara preta das crianças que precisam da siesta, ou da rede cantada por Caymmi, Elba Ramalho ou do balanço da rede de Xand Avião. A rede, imortal em nossa cultura, continua como um lugar para repousar e encontrar sossego. Eu não abro mão da minha!!!
Adriana Barreto Lossio de Souza
Juíza de Direito da 9a Vara Cível
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OPINIÃO - 22/11/2024