João Pessoa, 13 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Alguém já disse que a memória é a imaginação deformada. Se é assim, posso pensar que a imaginação poderia ser uma memória distorcida. Aliás, tais categorias da mente humana, mescladas com outras, a exemplo da percepção, do pensamento e da linguagem, constituem elementos catalisadores do processo de criação literária. Arrisco mesmo em dizer que não existe criação literária sem o consórcio indissolúvel da memória e da imaginação. Uma não vivendo sem a outra, como o aconchego necessário das plantas xifópagas.
Tais reflexões me ocorrem porque leio e releio o texto Perdição, do jornalista e escritor Tião Lucena, centrado sobretudo na recuperação, quase mitográfica, de uma Princesa Isabel transfigurada, pela força mágica das palavras, num “reino encantado” do sertão, formulado na diversidade de seu ethos, costumes, lendas, paisagens, personagens, comédias e tragédias, a compor um pequenino relicário do passado.
Aqui, o autor não se prende ao tema passional da Revolução de 30, não traz João Pessoa nem José Pereira para encenar o conflito axial da história paraibana, nem tampouco o travelling felliniano das emulações jornalísticas, da era de Biu Ramos, Frutuoso Chaves, Arlindo Almeida, Chico Pinto, Natanael Alves, Toinho Vicente e tantos outros que se prefiguram como memória vívida da fase romântica do impresso.
O que vem desta vez, sempre a seu jeito direto, destabocado, sarcástico, sem papas na língua, é um conjunto de quadros sociais e antropológicos, atestando a figuração estranha que demarca a existência humana em suas práticas cotidianas, anseios psíquicos e surpresas morais.
A própria cidade “Perdição”, talvez mais imaginária que real, talvez mais fiel à essência do ambiente psicológico e topográfico do que a própria Princesa concreta, hoje tragada, como tantas outras, pela lógica fria e anônima do progresso, da ordem do capital e do mercado, sem falar na motocicleta que demoveu o galope dos cavalos, como que abre, em tela panorâmica, a sequência das cenas e retratos que vão corporificar sua fisiografia existencial.
“O reino encantado do sertão se chamava Perdição, ficava no alto de uma serra e era cercado, nos seus quatro cantos, por quatro serras maiores. {…} Do alto de uma delas, a mais comprida, se avistava um bonito vale e, no centro desse vale, dava pra ver o reino encantado e seus habitantes, vistos do alto em tamanhos tão pequenos que, quem via de lá de cima pensava que estava vendo pequenas formigas”.
O parágrafo funciona como um abrir das cortinas, para se avivar, em movimentos rápidos e contorcidos, a coreografia de espantos cristalizada em pequenas narrativas ou descrições, de casos e “causos”, de situações e de apelos, nos quais o homem, esse bicho doido e inventivo, sobressai no seu destino de violência, solidão, tristeza, coragem e desamparo. Antes dos “Começos”, o narrador já nos previne, dentro daquela concepção fatalística que envolve o lugar e as criaturas: “Mas como em todo Reino encantado do Sertão também havia morte. Pessoas se amavam e se matavam”.
Eis aqui a síntese mais que perfeita desses enredos mirabolantes que Tião Lucena costura com seu estilo saboroso e picante, onde o “muito riso e o pouco siso” cadencia o tom e alimenta a perspectiva.
Os doidos, as mortes, o adultério, os loucos amores, com sua rigorosa e surpreendente tipologia (“fujão”, “sem fim”, “carnal”, “circense”, “interesseiro”, “animal”, “bandido”, “importado”, entre outros), assim como os valentes e os engraçados, formam e conformam os motivos geradores das histórias e dos acontecimentos aqui contados.
Não vejo neles a posição da palavra ficcional transmutada em conto, novela ou romance. Falta-lhes aquele fio de unidade que liga a distância formal dos ingredientes literários. É certo, contudo, que o peso do espaço, a presença ostensiva e dominante de “Perdição”, na sua qualidade de reino encantado do sertão e paisagem mítica ou território mágico, aparece como pano de fundo, regendo os caminhos e descaminhos de seus erráticos habitantes. Creio não ser, todavia, suficiente para amarrar, na coesão e na coerência, o desenvolvimento de uma autônoma fabulação.
Mas sinto nesses quadros a energia estética necessária para lhes qualificar como autêntico texto literário. O insólito dos personagens, o grotesco das ocorrências, o estilo solto e persuasivo, a riqueza antropológica, o valor documental, o apelo à imaginação e à fantasia, o poder evocativo, enfim, o sabor e o saber que se experimentam com a iguaria de suas páginas, contribui para a disposição do texto, no limite mesmo daquilo que entendo por um texto artístico.
É ler e conferir!
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OPINIÃO - 22/11/2024