João Pessoa, 26 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Quando eu era pequena, meu avô, que era cego em razão do glaucoma, afagava a mão no meu rosto e dizia que eu seria juíza. Nunca conseguiu enxergar minha face, porque, quando nasci, ele já não enxergava mais. De certo, sua predição foi assertiva, porque escolhi essa profissão.
É evidente que a magistratura tem seus encantos, mas também possui os seus desencantos. Julgar o próximo é um ato de muita valentia e responsabilidade, mas também demanda momentos de muita solidão, apesar de, atualmente, verificarmos que muitos juízes estão deixando a carreira para se tornarem youtubers ou mesmo influenciadores no Instagram, por acreditarem que a magistratura já não é mais tão atrativa.
Ser juiz é um ato de vocação, porque, diferentemente de outras profissões, exige um verdadeiro celibato, que frequentemente nos remete ao isolamento, já que não podemos misturar as coisas, sob pena de suspeição.
Tudo parece acontecer na primeira entrância, onde nos deparamos com o novo: as experiências do interior, os cheiros, temperos, gostos, falas, prosas, rimas, modos de viver. Geralmente, começamos em cidades pequenas, com poucos habitantes, mas cheias de cultura e histórias para contar.
Eu tive a oportunidade de ingressar por uma comarca de segunda entrância, Guarabira, uma cidade um pouco maior, com cerca de 60.000 habitantes na época. Era um período em que a cidade ainda não era dominada por facções criminosas, quando se podia visitar o presídio sem o risco de uma rebelião ou de acabar nas mãos de meliantes.
E assim procedi! Enfrentei uma rotina exaustiva de audiências criminais, com prazos apertados de 81 dias para encerrar o inquérito do réu preso, sob pena de configurar constrangimento ilegal. Com uma competência era inconciliável: começava pelo Tribunal do Júri e passava pela Execução Fiscal, Execução Penal, Mandado de Segurança e Habeas Corpus, além do Cível por distribuição legal.
Foram dias difíceis, sem nenhuma assessoria, com 3.000 processos para cuidar e nenhuma lágrima para derramar, sob pena de acumular as duas pilhas de processos que eu levava para casa todas as noites, após mais de 8 horas de expediente presencial. Seguia trabalhando noite adentro, com uma internet discada que frequentemente caía no meio da noite após a chuva, e não se podia falar em saudade, só no fim de semana.
Visitar o presídio era uma obrigação na condição de juíza de execução penal, e conversar com os presos era uma necessidade.
Não posso deixar de lembrar do meu primeiro dia no Presídio de Guarabira, escoltada por oito homens e um carro de polícia para suporte. Parecia cena de filme de Hollywood. Mas, na segunda visita, já havia dispensado os policiais e ia apenas na companhia de uma servidora. Entrava nas galerias e conversava com os presos, que faziam suas reivindicações, sem medo de retaliação ou sequestro. Conquistei o respeito, tanto pela minha postura, quanto pelas obras sociais que promovíamos. Graças aos pedidos atendidos pela Prefeitura, o banheiro externo foi reformado e a estrutura da cozinha foi melhorada, trazendo menos hostilidade e mais humanidade para aquele ambiente infernal.
No presídio, conheci muitas histórias de como a vida se perde por um simples lapso, transformando um cidadão de bem em alguém atrás das grades.
Recordo-me de “Xispita”, um presidiário magrinho, que não tinha os dentes da frente e ria de tudo, sempre colocando a mão na boca, parecido com Renato Aragão interpretando “Didi”.
Interessei-me pela história dele. Na época, ainda se falava em furtos, e poucos eram os roubos à mão armada praticados na região. Em meio a tantos furtos, Xispita foi parar naquele lugar. Tudo começou quando ele trabalhava na casa da primeira-dama de um pequeno município próximo. Seu primeiro crime foi furtar os tamancos da primeira-dama. Vaidoso como só, ele provou os sapatos e saiu desfilando pelas ruas, sem medo de ser feliz, até dar de cara com a proprietária, que prontamente reconheceu o objeto comprado em uma das melhores lojas da capital. Resultado: foi preso.
Dada uma nova chance, ele voltou à casa da primeira-dama, que, por sinal, era sua madrinha. Só que, desta vez, foi mais ousado. Era Dia dos Namorados e, precisava comprar um presente para a cara metade. Viu a bolsa da primeira-dama repousando calmamente sobre a cama, enquanto varria o quarto. Queixo apoiado sobre a vassoura e uma série e interrogações… Principalmente por aquela voizinha do mal, atentando seu juízo, para fazer o que não poderia. Então, foi lá e pegou os R$ 50,00 reais para comprar o presente do seu namorado.
Ao ser interrogado, perguntei-lhe se o acontecido era verdade. Ele confessou tudinho:
– Sim Senhora Dra.
E eu perguntei-lhe:
Xispita, por que você furtou o dinheiro da bolsa da primeira-dama do município de…?
Antes de responder, nervoso e vermelho como carmim, colocava os cabelos cacheados atrás da orelha e dava aquele risinho à la Didi Mocó. Minha vontade de rir era enorme, mas a liturgia do cargo não permitia. Muita seriedade nessa hora!
Contando-me o ocorrido, ele prosseguiu:
– Doutora, a bolsa da primeira-dama estava em cima da cama.
– Ela olhava pra mim.
– Eu olhava pra ela.
– E eu escutava aquela voz bem distante que dizia: venha, venha, venha…
– Então, não me contive, abri a bolsa e peguei o dinheiro.
Resultado: foi condenado mais uma vez, mas teve a pena atenuada pela confissão.
A história do “Xispita” é, ao mesmo tempo cômica e comovente, retrata como pequenos desvios podem trazer consequências desproporcionais para quem vive à margem da sociedade. É uma narrativa que mistura a dureza da realidade com momentos de leveza, proporcionando um vislumbre da essência humana em situações difíceis.
E são muitas as histórias que fazem valer cada dia na magistratura!
ADRIANA BARRETO LOSSIO DE SOUZA
Juiza de 9a Vara Civel de João Pessoa.
Especialista em Gestão Jurisdicional de Meios e Fins e Direito Digital
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TURISMO - 19/12/2024