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Os Sertões de Euclides da Cunha, têm sido estudado sob os mais variados e sugestivos aspectos. Vasta é a bibliografia brasileira em torno do grande livro e de seu autor. Temos um estudo em forma de monografia de José Calasans, “O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro”, para o qual ponderável contribuição foi recolhida na obra de Euclides; não se conhece outro estudo sobre o folclore em Os Sertões. Uma pesquisa que demonstre a importância dos temas e motivos populares na obra capital do sociólogo de Cantagalo.
Euclides da Cunha dever ser considerado como um dos precursores dos estudos de folclore no Brasil. Seu livro Os Sertões está pontilhado de observações valiosas e descrições coloridas dos nossos costumes e tradições. Os Sertões, em sua primeira edição, apareceu no ano de 1902. Nesse tempo já se iniciara na Europa um vigoroso movimento de valorização das tradições populares mas tudo indica que Euclides, embora reconhecendo a importância dessas manifestações, não se entusiasmou desde logo pelo popular, como um ramo autônomo da Antropologia. O vocábulo Folclore, que surgiu em 1846 para substituir a expressão antiguidades populares, foi uma criação do arqueólogo inglês William Thomas e está grafado apenas uma vez em Os Sertões, na página 100. Não podemos afirmar ou sabemos se ele utilizou o termo noutros livros ou trabalho de sua autoria mas é sobremodo significativo o fato do grande escritor ter sabido aproveitar e valorizar como poucos, as nossas tradições, intercalando a sua obra, – principalmente a primeira parte, – de matérias autenticamente folclóricas.
Vaquejada – Talvez a página mais viva e brilhante de Os Sertões, sob o ponto de vista do que foi apurado, a que Euclides dedicou à vaquejada páginas 125 a 137 e que consiste, segundo ele declara, “no reunir, e descriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, em mistura, em um compascuo (comunhão de pasto) único e enorme, sem cercas e sem valos (barrancos). Menciona a época de sua realização, – de junho a julho, – e a localização, na maioria das vezes numa várzea complanada e limpa. Após desaparecer o vaqueiro no matagal, atrás do gado, descreve o autor o momento culminante da vaquejada, com estas pinceladas fortes: “De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépito de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de gado; e logo após, sobre o cavalo que estaca esbarrado, o vaqueiro, teso no estribo…”
Cavalhadas e Mouramas – Euclides faz referência às cavalhadas e danças de mouros, quando escreve à página 130: “Seguem (os sertanejos) para as vilas se por lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de há três séculos”.
Encamisada – Muito curiosa a alusão a uma diversão antiga. Diz Euclides à página 130: “exótica encamisada, que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições. Velhíssima cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo esquecida na terra onde nasceu, onde a sua versão dispendiosa e interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à maneira de mulçumanos e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando rápidos, em escaramuças e simulados recontros, é o encanto máximo dos matutos folgazãos”.
Indumentária do vaqueiro – Descrevendo o vaqueiro, Euclides dá-nos o retrato completo de sua rude indumentária às páginas 118 e 119: “Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até às virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas guarda-pés de pele de veado – é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo”.
Ferros – “Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelas costas, em pequenos ângulos, nas orelhas. (Página123). É como define os ferros, que servem para a identificação do proprietário do gado. Costume curiosíssimo e sem dúvida o que regista à mesma página, quando nos fala da habilidade do matuto em reconhecer os ferros. Declara que se um vaqueiro encontra entre o seu rebanho uma novilha ou um garrote de outra fazenda, cujo proprietário desconhece e não pode assim devolver o animal, conserva-o, embora não lhe pertença. “Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim com toda descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém descreveu ou sugeriu”.
Mitos – Escrevendo sobre a religião do sertanejo, página 139 descreve esses mitos: “… As lendas arrepiadoras da caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas de cabeças notívagos…” Euclides da Cunha foi totalmente arrebatado por estas superstições do povo de Canudos, do sertão da Bahia.
Desafios – Euclides fixou um desafio sertanejo à página 131: “Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muitas vezes belíssimas:
Nas horas de Deus, amém
Não é zombaria, não!
Desafio o mundo inteiro
Pr’a cantar nesta função!
Resposta:
Pra cantar nesta função,
Amigo, meu camarada,
Aceita teu desafio
O fama deste sertão.
Sabemos que os primeiros narradores da campanha de Canudos foram os poetas populares, tendo inclusive Euclides da Cunha recolhido alguns ABC’s sobre a luta dos conselheiristas. Isto posto mostra a contribuição do autor de Os sertões para com o folclore sertanejo.
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VÍDEO - 02/01/2025