João Pessoa, 02 de dezembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Não li o seu Camões, além do desconcerto, na mesma sexta-feira em que você me presenteou. Estava bastante cansado, em decorrência de uma semana muito atribulada, e ainda deveria ministrar a última aula de um curso sobre Augusto dos Anjos, na Academia Paraibana de Letras, no sábado, das 9 às 12 horas. Sequer preciso dizer o quanto o sábado também se tornou curto, apesar do estado de eudaimonia que me invade quando estou em sala de aula, falando dos grandes e amados poetas.
Pois bem, caríssimo Alexei, descansei no domingo, limpei a mente e entreguei-me, na manhã de hoje, segunda-feira, à leitura de seu livro. Já havia lido o poema em plaquete Camões em nós, por nós, e já havia lhe confessado que estava me deliciando com a leitura. Uma coisa, contudo, é a sua leitura isolada que já o faz grande e digno do poeta, com quadras lapidares como
Dos coleios viperinos
Dos bípedes, mais funestos
Que as víboras, com seus gestos
Polidos, seus modos finos.
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O canto exato e perfeito
Que foi teu, por dom gratuito,
Mas tal milagre fortuito
É o sangue do nosso peito.
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Que une o nobre peão e ao santo,
De alta estirpe ou nenhum berço,
Gládio fizeste do verso,
Mirífico e amargo canto.
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Uma luz sem tempo, de antes,
Que a mudança não atinge,
Que cega a Górgona e a Esfinge,
Que soma mais que os instantes.
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Outra coisa é ler esse poema magnífico junto com o insuperável soneto A Última Visão, cuja cadência se dá exatamente entre as pausas do aparentemente apenas descritivo ou referenciado, mas guardando uma narrativa, ao mesmo tempo ausente e presente, para quem tem uma certa intimidade com Camões, a sua vida e a sua poesia. Como não se extasiar com esta Ultima Visio? Como evitar que cada termo ali, preso na sua solidão, nos arranque da memória e do peito toda uma essência lírica e épica que se faz inefável, daí a necessidade apenas de referi-la, não de dizê-la? Que outras pessoas possam se deliciar com o interdito desse soneto, belíssimo na perfeita consonância da construção e da substância:
A Última Visão
É a hora de partir. Quão breve chega.
Tudo subitamente se amontoa…
Tejo, Mekong, Mondego, a musa grega,
O Rossio, os bordéis, Ceuta, Lisboa.
Naufrágios. Jogo. Oceano. A vista cega.
Bárbara. Dinamene. Uma coroa
Na areia. O mar. A praia que se entrega.
Os sinos de Sant’Ana. A praça em Goa.
Os versos. Prensas. Autos. Céus. Semblantes
De pedra. Os pais. Arruaças. Cães. Cadeias.
A espada sob o sol. Seios de amantes.
O Olimpo. O Letes. Náiades. Sereias.
Tudo passou em menos de uma hora.
Só Deus sabe o que principia agora.
O discurso – Camões, 500 anos, o tempo acorrentado –, apresentando no Real Gabinete Português de Leitura, em 10 de junho deste ano de 2024, em homenagem aos 500 anos do poeta, é a pérola que faltava na maravilhosa joia apresentada pelas quadras e pelo soneto. É texto para se ler mais de uma vez, de maneira a sentir a real importância dessa pérola que ostenta, com muito brilho a grandeza do poeta, de um Camões vivo, como sempre esteve em vida, e ainda muito mais do que os muitos que se julgam poetas.
Agradeço, portanto, ao caríssimo amigo, a oportunidade dupla que a fortuna e o caso colocaram diante de mim: de termos dividido uma mesma mesa sobre Camões e de você ter-me proporcionado a leitura de tão belos versos sobre o poeta e de tão consistente texto sobre a sua vida e a sua obra. Poeta que ressoa e se eterniza dentro de nós, como dizem os versos desta quintilha de Camões, além do desconcerto:
Mestre, não sei se é consolo,
Todos nós marchamos sós,
Mas é em nós que a tua voz
Vibra, não no coevo tolo
Que de Olisipo é hoje o solo.
Grande abraço,
Milton
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