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Kubitschek Pinheiro – MaisPB
Fotos – Leo Aversa
Em 2021, entrevistamos João Donato, um dos pioneiros da bossa-nova e um dos responsáveis por popularizar a música brasileira no exterior. A conversa com João Donato aconteceu pelo telefone e ele festejava o lançamento do LP “Síntese do Lance” em parceria com Jards Macalé, lançado naquele ano. Foi o último trabalho de João. O conteúdo não foi publicado na época e João Donato morreu em 2023, aos 88 anos. João Donato atuou ao lado de grandes nomes do jazz internacional como Mongo Santamaría, Chet Baker, e Bud Shank.
Esta semana mexendo nos arquivos encontramos a entrevista com João Donato e, com a autorização da família, publicamos neste sábado – a então, entrevista inédita.
O álbum ´Síntese do Lance´ foi gravado na Rocinante, no Rio, num histórico encontro insólito, produzido por Sylvio Fraga, Marlon Sette e Pepê Monnerat. Nas 10 faixas inéditas, Donato e Macalé nos apresentam um trabalho sossegado, de primeira, de leveza solar. O disco traz três canções instrumentais e está em todas as plataformas.
“Síntese do Lance” é cheio de histórias e tem muitos lances, mas a gente vai contar somente um, o resto está na entrevista. A segunda faixa ´Dona Castorina´, é dedicada a Ivone Belem Donato, o amor de Donatão, com que viveu por 22 anos. Dona Castorina é o nome de uma estrada na Floresta da Tijuca, por onde o casal costumava passear, e é também o apelido que João deu a Ivone, que, por sua vez, o chamava de “Castor”; daquelas formas carinhosas – e, por vezes, incríveis – com que se tratam os namorados.
Conversamos esta semana com a jornalista Ivone Belem Donato, sobre esse amor, esse bem e trazemos a conversa na íntegra para leitores do MaisPB. “O João era como um bebê, que quando você chega no berço, ele entrega um sorriso”, disse Ivone, que é gestora cultural, especialista em Produção de Conteúdo e Projetos Culturais e agente de carreiras artísticas.
MaisPB – João Donato… é uma alegria estar lhe entrevistado novamente…
João Donato – Alegria minha, gosto muito de falar com você.
MaisPB – Rapaz, esse disco ´A Síntese do Lance`, que você fez com Jards Macalé é sensacional…
João Donato – Gostou, né? Eu também, é um disco muito divertido e bom.
MaisPB – Como é que vocês combinaram de fazer ´Síntese do Lance´?
João Donato – Nós nos encontramos lá em Arara, onde tem a gravadora a Rocinante, que é o cavalo de Dom Quixote. Ficamos uma semana lá e gravamos o material que tinha sido feito em casa. Um mês antes, eu mandei músicas para Macalé, ele botou letras. Ele ligou pra mim e disse que tinha música ali que lembrava o Duke Ellington
MaisPB – Deve ter sido uma curtição?
João Donato – Foi sim, tomávamos café, gravávamos a manhã inteira, depois almoçávamos e tirávamos uma soneca. A gente se divertiu muito. Não tinha esse negócio de vamos trabalhar, tá na hora. Não, era diversão. Foi bom demais. E o resultado é esse que a gente está ouvindo e sente prazer por isso.
MaisPB – João, vamos falar dessa canção “Coco Táxi”, que nos remete para Cuba?
João Donato – O ´Coco Táxi´ é um triciclo e a cabeça dele é um coco. Como tinha o orelhão aqui no Brasil, pra gente telefonar. Aqui o orelhão parecia uma orelha, pois lá, eles colocaram um coco grande.
MaisPB – E é um coco louco, né?
João Donato – É, foi o Macalé que botou esse nome na letra, “coco táxi, coco louco”, (canta João ao telefone…). “Nesse balanço louco que eu fico solto”, alguma coisa assim” completa, Donato.
MaisPB – A faixa que dá nome ao disco, “Síntese do Lance”, é bom pra dançar, né?
João Donato – Ah, esse é um mantra de Zé Pilantra. Eu anotei isso num caderno faz muito tempo, um caderno desses amarelos, que a gente não tem a ideia de quantos anos tem. Estava escrito assim: ´Síntese do Lance´.
MaisPB – O Marlon Sette está nessa história, não é?
João Donato – Sim, ele veio aqui em casa pra gente discutir o repertório do disco, os arranjos, aquela coisa toda. Ele viu a ´Síntese do Lance´ e quis saber mais. É assim: “Salve a Malandragem, lá no morro sim que é lugar de tirar onda, bebendo cerveja fumando cigarro e jogando ronda ”. O Marlon gostou, e disse: ‘taí, vamos gravar isso”
MaisPB – A faixa “Cururu” é ótima. Aqui no Nordeste a gente chama o sapo de cururu…
João Donato – É sim. Tem a música “sapo cururu na beira do rio”, que a gente cantava quando era criança, mas eu não lembro mais.
MaisPB – Ivone e a mulher de Macalé fazem um coro na canção ´Síntese do Lance´…
João Donato – Elas estavam lá no estúdio Arara e na hora do coro cantaram com a gente, não só nossas mulheres, mas todos amigos que estavam ali.
MaisPB – Esse disco parece a síntese do Donato?
João Donato – Trocando em miúdos, é o resumo da ópera.
MaisPB – Feita por Macalé ´Amor vem da paz´ em parceria com Ronaldo Bastos – foi para homenagear sua mulher, Rejane Zilles. “Eu dei sorte ao encontrar você/ Quando o mundo ia desabar/ O amor vem da paz”, diz a canção. É bonita essa não, né João?
João Donato – É um amor explícito. Ele é que nem eu, sou louco com minha mulher Ivone, minha força, meu bem maior.
MaisPB – Donato, você vai gravar um novo disco com seu filho Donatinho?
João Donato – A gente ia gravar com o maestro e compositor Letieres Leite mas ele já desceu do ônibus, como dizia o Boni da globo. Letieres desceu do ônibus e não podemos mais contar com ele, que era um excelente músico. Mas a gente vai continuar fazendo muito som. Olha quando a gente chega no mar, a gente abraça o mar…
MaisPB – Você já ouviu o disco ´Meu Coco´, o disco novo de Caetano Veloso?
João Donato – Sim. Ele tem o coco também, tô gostando, já ouvi algumas faixas, o meu ´Coco Táxi´ está em primeiro lugar, e o Coco de Caetano está em segundo. Eu gosto muito de Caetano, uma pessoa inteligente e boa.
MaisPB – Caetano fez Meu Outro Retrato, em que homenageia os dois Joãos, o Donato e Cabral. É boa demais, né Donato?
João Donato – É sim, Caetano fez uma coisa lá comigo e o poeta Cabral, falando de um que não gosta de música e outro de poesia, eu não sei bem qual é dos dois
MaisPB – Vamos falar do tempo do amor vocês, da alegria daquele homem talentoso e bom…
Ivone Belem Donato – Sim! Você definiu muito bem! Foram anos de muito amor. Logo que o João faleceu, eu ficava muito triste de lembrar dos nossos últimos momentos. Mas agora, tendo passado um tempo (ah, o tempo!), eu me alimento das lembranças do nosso amor e parceria. Eu acordo e sempre penso nele, como era bom tê-lo ao meu lado com aquela suavidade. O João era como um bebê, que quando você chega no berço, ele entrega um sorriso. Eu virava as costas e quando nosso olhar se reencontrava, ele esboçava aquele sorriso. Nos conhecemos de uma forma muito casual: ele foi fazer um show em Brasília no dia 3 de dezembro de 1999, em um restaurante e espaço cultural que há pouco fechou as portas. O nome do local: Carpe Dien, expressão em latim quer dizer “aproveita o dia”. Aproveitamos cada instante, contas de telefone com horas de conversa, até que uns dez dias depois, ele voltou e finalmente começamos a namorar.
MaisPB – Benditos anos 2000, né Ivone?
Ivone Belem Donato – Sim. Em janeiro de 2000 ele chegou na minha casa com um teclado em baixo do braço e ficou entre Rio e Brasília, porque a minha atividade como jornalista estava solidificada na capital. Mas esse foi o nosso lema: viver o dia de hoje. Em 2001 casamos e em 2005 eu mudei para o Rio. Foi então que eu assumi definitivamente a carreira profissional dele. Passei a dirigir a editora musical, organizei o catálogo de obras dele e supervisionava a agenda de shows. Em 2012, criei o Instituto João Donato para organizar o vasto acervo de partituras manuscritas, arquivos de áudio, muito papelzinho com pedaços de música. E assim vivemos essa parceria de vida muito bem vivida por 24 anos. Rodamos o mundo fazendo shows e sempre guardávamos alguns dias para passear, fazer umas miniférias. João incansável tirava onda em vários idiomas. O negócio dele era trocar sorrisos.
MaisPB – Como era que Donato compunha as canções – os horários de trabalho, o que ele lhe mostrava antes?
Ivone Belem Donato – O João costumava dizer que compor música era como fazer um suco de frutas: uma porção de cupuaçu, um tanto de maracujá, uma pitada de canela. Mas o que eu percebia é que ele capturava os sons no ar. Nunca o vi sentado compondo uma música. Ele só sentava à frente de uma mesa com o piano ao lado para escrever arranjos. Mas para compor, ele tirava inspiração de tudo o que passava de belo pelos seus ouvidos, olhos e coração. Certa vez ele foi à casa da Marisa Monte, tocou a campainha e daquele som saiu uma música. No Japão, ele ouviu um daqueles toques de alerta para os passageiros, e dali escreveu uma música. Na casa que morávamos na Urca, ele tinha uma cadeira de massagens reclinável que com a maresia começou a produzir um nheco nheco. Ele se balançou ritmadamente e criou uma música com o maestro Laércio de Freitas que o visitava. Outra: ele participava de uma entrevista com o guitarrista Nelson Faria e passou uma ambulância. Ali, ao vivo, ele tirou uma música e deu continuidade à música que se chamou “Samba da ambulância”. Então, o João era esse compositor, que se emocionava com os sons.
MaisPB – Não à toa ele compôs “Lugar Comum”, né Ivone?
Ivone Belem Donato – Sim, foi a partir do assobio de um barqueiro que ele escutou aos sete anos de idade à margem do rio Acre, em Rio Branco, sua terra natal. Viver com João foi, como costuma dizer o irmão e parceiro dele, Lysias Enio: “passarinho que dorme com morcego acorda virado de cabeça para baixo”. Ele trabalhava nas composições por dias e não tinha como eu não opinar. Todas eram lindas. Ele era muito detalhista. Às vezes, eu perguntava: “João, esta música não tá parecida com Emoriô (obra dele com Gil)?. E ele: “tá”. Ou então, quando a gente brigava, eu: “que música triste!”. E ele: “é assim que tô me sentindo”. Muito querido.
MaisPB – Donatinho seu filho já é um artista talentoso e inovador…
Ivone Belem Donato – Donatinho sempre teve uma personalidade artística própria, mas é perceptível no trabalho dele como músico e produtor o legado deixado pelo pai. E o filho assumiu essa missão com muito profissionalismo, amor e coragem, pois o privilégio de ser filho do João Donato impõe também uma grande responsabilidade. Donatinho é um artista autodidata como o Donatão, mas se diferencia por ser um pesquisador para além do que já foi feito na música instrumental, eletrônica e pop, ele é antenado e está sempre à procura da batida do agora no seu tempo. João também era antena, mas focava muito nos jazz e na música instrumental rítmica, tinha um ouvido seletivo e direcionado para aquilo que o interessava. Ele só veio a se interessar pelas tecnologias, ainda assim de uma forma compulsória, a partir da pandemia de Covid-19. Donatinho sempre mostrava o seu trabalho para o pai. João queria saber por onde o filho andava, pois Donatinho viajava com os artistas com quem trabalhou: Vanessa da Matta, Fernanda Abreu, e com a sua própria banda. Donatinho estreou aos 20 anos com João Donato, no palco do Teatro Rival no Rio. Mais de dez anos depois eles começaram a compor juntos. Inicialmente, para o disco “Sintetizamor”, com o qual ganharam o prêmio de melhor álbum eletrônico no Prêmio da Música Brasileira. Em 2020, no período de isolamento por conta da pandemia, Donatinho começou a visitar o pai com todos os cuidados e então eles passavam dias e noites escutando música, tocando piano, compondo. Quando o pai morreu, ele já tinha um disco inteiro, que lançou no mês passado, o Sintetiza2. Eles tinham, naturalmente, uma conexão “umbilical” por meio das teclas do piano. João nunca ensinou o Donatinho, mas o filho aprendeu tudo e muito mais. Era frequente ele dar outros caminhos para músicas consolidadas do Donato. Muito bonito de ver essa conversa pessoal dos dois.
MaisPB – Como era João Donato em casa, no dia a dia?
Ivone Belem Donato – João gostava de ficar em casa ouvindo jazz e os seus compositores preferidos da música clássica, Debussy e Ravel. Ele ficava na janela da Urca apreciando no horizonte os aviões chegando e saindo no Santos Dumont. A visão dos barqueiros saindo de madrugada para pescar também era uma cena que o remetia à infância no Acre, junto com os passarinhos que vinham “conversar” com ele antes do clarear do dia. No despertar do dia é que ele ia dormir. Acordava depois da uma da tarde e tomava uma tigela de açaí com farinha de tapioca. Então, o dia dele começava bem. Na geladeira, não podiam faltar comidas típicas do Norte: o pirarucu frito com farofa feita com a farinha de Cruzeiro do Sul (AC), o suco de cupuaçu, a castanha do Pará, o tacacá que ele inicialmente encomendava dos acreanos e depois comprava num restaurante e armazém de produtos do Norte aqui no Rio. Onde quer que fosse, ele procurava pelo açaí e pelo tacacá. Com a barriga cheia de açaí, ele ia para o piano e muitas vezes, para mim que sou leiga, parecia que ele estava tocando qualquer coisa. Era ali que ele criava, com a mente livre e despreocupada. Ele gravava tudo isso e, quando precisava de uma música inédita para algum projeto, voltava a fita. Ele também gravava, sempre que podia, os seus shows, para aproveitar ideias que surgiam em meio a improvisos musicais. Antigamente, ele gravava em um minigravador e atualmente no celular. Temos no acervo 1.600 fitas k-7 e centenas de horas de gravações digitais.
MaisPB – Foi bom morar na Urca?
Ivone Belem Donato – A Urca é um bairro bucólico, se assemelha a uma cidade do interior. Sempre que um amigo músico passava pela casa, fazia uma parada e era uma nova parceria que saía. No inverno, ele gostava de ficar debaixo do edredon assistindo a filmes. Ele tinha um gosto bem eclético: ia de Ingmar Bergman a obras com uma pegada trash, passando por filmes e séries de prisioneiros, os quais ele vibrava quando conseguiam fugir da prisão. Esse era o João.
Escuta aqui a faixa Côco Taxi
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