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José Lins traça um perfil psicológico do último bobo de engenho da várzea do Parahyba. Trata-se do famoso PAPA-RABO, uma espécie de palhaço decadente que nasceu para a triste predestinação de divertir os moleques da bagaceira. Nos dias de festa aparecia, solene, na Casa Grande, de fraque e bacorinha, gravata branca e calças de brim “Fluminense”. Era o capitão Vitorino Carneiro da Cunha mas bastaria uma observação, por mais leve que fosse para ele perder logo o equilíbrio e cair nos domínios do ridículo e da irreverência, se não nas palavras de baixo calão.
Conta-nos Zé Lins de Vitorino, ou melhor, Papa Rabo da seguinte forma: “No seu delicioso livro de memórias, Júlio Bello nos fala dos bobos de engenho e, particularmente de João Valuá, (o nome parece mesmo de bobo de rei de França). Valuá era de Sirinhaém e propriedade de Sebastião do Rosário. Sempre que saía na sua bela montaria a passeio, o velho Sebastião não dispensava o pajem e o bobo. Sebastião Lins Wanderley Chaves, pela sua grandeza de trato e riqueza de vida, foi dos últimos grandes senhores de casa grande que tinham os seus cavalos, o seu e o do pajem, arreiados, com estribos, fivelas da cabeçada, freios, bridas, cortadeiras, esporas, tudo de prata maciça. E não dispensava do seu bobo Valuá.
O bobo era uma figura curiosa nos engenhos, espécie de parente pobre que decaía, às vezes, pelo álcool, outras pela cretinice, àquela função de divertir os ricaços. Muitas vezes, era até um primo, ou um próximo de boa família que fazia as funções de palhaço da casa grande. Lembro-me do bobo do engenho Massangana, na Parahyba, um Carneiro da Cunha bastardo, alto, cheio de corpo, até meio bonito de cara, que acompanhava meu tio José Francisco de Paula Cavalcanti (Trombone), para toda parte. Chamava-se Vitorino Carneiro da Cunha, mas o seu nome verdadeiro era Papa-Rabo. Vestia-se ele, nos dias de festa, de fraque, gravata branca, calça de brim “Fluminense”, e chapéu bacorinho. De cara raspada, até nas sobrancelhas, uma cara de cômico, autentica, com qualquer coisa dos Bedeguebas de pastoril. Nós, os meninos, judiávamos com o velho impiedosamente. Os rapazes faziam o mesmo e o pobre Vitorino para se livrar das nossas judiações, ficava pela sala de visitas, conversando com os grandes. O curioso era que o bobo de Massangana não respeitava ninguém. Saía-se de quando em quando com inconveniências danadas, mas sempre que os mais velhos nos pegavam torturando-o, nos repreendiam.
Papa-Rabo comia na mesa, mesmo em banquete, ao lado do senhor de engenho e por qualquer coisa, insultava até as senhoras, gritando na frente de todos o que bem entendia. Não dava tratamento de senhor a ninguém. Era um igual, como se fosse um senhor de engenho, dando palpite nas conversas. Quase sempre uma opinião de Papa-Rabo dava em gargalhadas. De colete, punhal na cava, dizia-se homem valente, embora apanhasse da mulher, uma mulata.
A mania de Papa-rabo era contar grandezas. Dizia-se possuidor de grandes terras no sertão, e respeitado de cangaceiros. Com ele era no punhal, na ponta da faca. Tudo mentira. Em certas épocas do ano, pedia um cavalo emprestado no engenho e anunciava uma visita às suas propriedades, no alto sertão. Ia ver o gado, assistir a partilha e passava um mês por fora. Ficava porém, pelos engenhos de nossos parentes de Pernambuco. Quando voltava, vinha com as notícias: a seca tinha matado toda a criação, ou os vaqueiros haviam roubado tudo o que era seu. Uma fraqueza de Papa-Rabo era a sua raiva dos padres. Sempre que havia algum padre no engenho, tomavam providencias com o bobo, senão, sem que nem mais, Papa-Rabo provocava um escândalo. Vendo padre, excedia-se na linguagem, passava à pornografia, contando histórias de frades mulherengos. Não havia carão que servisse e discutia religião, fazendo-se de ateu, descompondo os santos. Ficava um sacrílego. Minha tia Yayá mandava que ele se calasse. E era ainda pior, Papa-Rabo aumentava a voz, descompunha também a minha tia e enfurecido o bobo era indomável na sátira, no desaforo. Passada a fúria, era chamado para um canto e com um pouco mais, toda aquela tempestade serenava, e voltavam as graças de Papa-Rabo. A minha tia odiava-o, mas o bobo era mantido no seu lugar com o seu poder respeitado. Lembro-me dele com muita saudade. Um dia, morreu de repente, sentado numa cadeira de balanço, no alpendre da casa grande.
Foi o último bobo da várzea do Parahyba. Mas tenho para mim que era ele muito mais engraçado do que Marques Rabelo e Oswaldo de Andrade, que são sem dúvida nenhuma, dois espíritos tão finos”.
O bobo é diferente do palhaço, embora ambos tenham algumas características comuns que é o divertimento. O palhaço é lírico, inocente, ingênuo, angelical e frágil. O palhaço não interpreta, ele simplesmente é. Ele não é um personagem, ele é o próprio ator expondo-se, mostrando sua ingenuidade. Na busca desse estado, o ator não busca construir um personagem, mas sim, encontrar essas energias próprias, tentando transformá-las em seu corpo. Portanto, cada ator desenvolve esse estado pessoal, de palhaço, com caraterísticas particulares e individuais.
O bobo de engenho pode ser considerado mais folclórico e de mais dramaticidade humana, carregando uma carga psicológica muito grande em relação a si mesmo e às próprias fraquezas humanas. O palhaço é mais divertido, talvez porque parte de uma criação artística e o bobo não, ele nasce como bobo e como bobo morre.
Demos graças a Zé Lins do Rego que conviveu e descreveu tão bem a figura lúdica do bobo de engenho Vitorino Carneiro da Cunha o famoso e imortal Papa-Rabo.
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