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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Afetuosas relíquias

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publicado em 25/12/2024 ás 07h00
atualizado em 24/12/2024 ás 16h57

 

O haicai não é só uma forma modelada em três versos, dois de cinco, e um de sete sílabas. É também e, talvez, principalmente, uma modalidade do olhar, uma atitude ou uma disposição diante das ofertas da natureza, dos reinos animal, vegetal e mineral, considerados os ciclos do tempo e as medidas do espaço.

Na sua acepção originária, em âmbito da cultura oriental de onde provém, o haicai é uma espécie de caminho para alcançar o satori, ou seja, um meio através do qual atingimos a libertação do sofrimento próprio do universo fenomênico, a partir de uma intuição da natureza essencial das coisas. Ou, dito de outra forma, é uma súbita e efêmera iluminação, durante a qual se pode ver a vida íntima dos objetos e das criaturas, em sua verdade, beleza e sagração.

Integra, assim como as artes japonesas em geral, o contexto da sabedoria zen, preservando sempre o sentido de mistério que emana da meditação acerca das coisas, sobretudo das coisas naturais. Diria mesmo que o haicai se constitui numa maneira singular de viver e respirar o alento no sigilo das paisagens como uma exata e concentrada tomada metafísica. Como um tipo de vinheta em que o pigmento poético das coisas viesse à tona, rápido e decisivo, como a luz de um relâmpago.

É preciso, pois, procurar manter, em seu processo de aclimatação em outras culturas, a exemplo da brasileira, esses traços originais, para que o paradigma nipônico não se consume tão somente como um terceto de valor literário. Insisto: mais que a forma em si, com seus critérios métricos e fatores estilísticos, pesam, sobremaneira, a delicadeza e a densidade da percepção de mundo, transformando pequenos fragmentos poéticos em absolutos transcendentais.

Faço essas considerações de ordem teórica, porque estou a ler o conjunto de haicais que a professora e pesquisadora, Neide Medeiros, vem de publicar sob o título de Relicário (João Pessoa: Midia Gráfica Editora LTDA, 2023), intentando, mais uma vez, o exercício com a palavra poética. Em 2010, na exposição Janelas do mundo, com o artista plástico, Miguel Ângelo Bertollo, publicou seus poemas pela primeira vez. Aliás, é o próprio Bertollo que empresta seu talento criativo às ilustrações dos textos ora publicados, enriquecendo, dessa maneira, a dimensão concreta e gráfico-visual da obra.

Relicário lembra relíquia, lembranças, memórias. Também pode remeter para os antigos baús de guardados, as caixinhas de miniaturas preciosas, a gaveta dos objetos amados, ou, mesmo, conforme intenção extraliterária da autora, aquela joia minuciosa em forma de coração que as mulheres usam no pescoço. Ademais, se sabe que o coração é o lugar da recordação, o órgão lírico por excelência, cuja função primordial consiste em trazer, para seus recantos secretos, o mundo de volta. Sobretudo o mundo das coisas queridas e amadas.

Pois bem, percebo, na dicção lírica de Neide Medeiros, lidos e relidos seus trinta haicais, tanto esse esforço de explorar os conteúdos da memória afetiva, quanto aquele sentido de aclimatação às exigências originárias do modelo poético oriental.

O foco das imagens se volta para o elemento visual. É bom lembrar que Neide Medeiros também exercita a arte da pintura, entabulando, assim, certa intimidade com a magia das cores, seus apelos simbólicos e sua energia sinestésica. O estrato, portanto, dos “objetos representados”, para me valer da categoria de Roman Ingarden, contempla pássaros, flores, paisagens, objetos, árvores, insetos, fenômenos, quadros, geografias… Tudo, na perspectiva do detalhe, no agudo senso de percepção da substância a se transfigurar; num tom leve, sereno, suave, do qual resulta, quase sempre, uma visão encantatória.

“Vestido de seda ∕ o pássaro do poente ∕ corta o azul do céu”. Eis a peça que abre a coletânea. Nada mais que um simples instantâneo. Um clic no dorso da paisagem. Na mesma linhagem, também recolho o haicai da página 33: “No muro antigo ∕ uma lagartixa devora ∕ inocente mosca”. Ou, mais esse, à página 65: “Cidade antiga ∕ igrejas centenárias ∕ longe tangem sinos”.

Outros movimentos também são percorridos pela poeta, talvez condicionados pelo viés da ensaísta afeita aos temas literários, a exemplo das investidas metalinguísticas e intertextuais que ecoam, aqui e ali, na configuração dos poemas. Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, Marcus Acciolly sãos vozes que se insinuam, em aclimatação mais livre, pelas malhas dos vocábulos e pelo tecido dos motivos de alguns haicais, distanciados, penso eu, das raízes primárias, embora de indiscutível valor estético. A propósito, o valor estético me parece singular no exemplo da página 31, lídimo achado, senão vejamos: “Pássaro cativo ∕ teu canto é um chamado ∕ para a liberdade”.

Estudiosa da literatura infantil e infanto-juvenil, pesquisadora dedicada da obra de José Lins do Rego, Augusto dos Anjos, José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, colunista de “A União”, sócia de várias instituições culturais, Neide Medeiros, a seu modo simples, gentil e despretensioso, vem dando uma das mais significativas contribuições à história da literatura feita na Paraíba.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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