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Hildeberto Barbosa Filho
Imagino que o ser poético ainda não é o poema. Ainda não se formula no âmbito da palavra. Ainda não é linguagem. Ainda não é forma. É pura e rude substância. Na verdade, existe, mas não se deixa mutilar pelas adagas de qualquer vocabulário.
Estaria, talvez, quem sabe, na platitude amorfa das coisas, dos seres e dos fenômenos. Naquela pequenina réstia de luz, dourando a zona obscura e inquieta que anuncia os sigilos da noite, ou, provavelmente, na noite que nos habita, ao descobrirmos que somos únicos e sós, desamparados, e ao relento, perante a indiferença da catástrofe cósmica.
Diria que o ser poético, essa estranha semântica do imponderável, esse movediço território de espantos, essa incontornável topografia de delicados acidentes, reside no silêncio milenar que acalma os fogos da tristeza e acaricia, solerte e imperceptivelmente, a possibilidade encantatória da vida.
O ser poético não se estreita no absoluto natural. Há que ser descoberto, contemplado, experimentado, fruído.
Pressupõe, parece, o olhar humano a imprimir certas rotações, capazes de adentrar o núcleo das coisas, na sua exata medida, precisão e claridade.
É o animal humano, já navegando no oceano revolto da cultura, o detentor dessa magia que consegue transmutar a vivência real em verdade estética. Com poder ilimitado e luminoso, ver o invisível no visível; prefigurar, nos gumes de um instante, a cicatriz da eternidade, e gerir, na cinzenta banalidade do dia, o arco-íris do mistério
O ser poético, portanto, faz morada onde mora o homem.
A sensibilidade, o pensamento, a memória, a percepção, a imaginação, a linguagem, todos esses compartimentos da consciência humana abrigam e expandem as manifestações do ser poético.
O ser poético pertence a todos e a todos visita na calada das horas. Chega, de repente, ao nosso coração, pela virtualidade lírica da recordação, com suas prendas e seus tesouros.
Traz tudo de volta, fundindo as nomenclaturas do tempo e diluindo os cálculos geométricos do espaço. Seu lugar é o êxtase.
Funde as distâncias, irmana os contrastes, aproxima os paradoxos, faz cessar o movimento que separa sujeito e objeto; mistura o sagrado e o profano, o apolíneo e o dionisíaco, o amor e a morte.
Vejo o ser poético, sobretudo, nos acontecimentos singulares.
Às vezes, dança seus adágios silenciosos no fulgor de um olhar, num gesto mudo, na mão que pole a película do vento.
Sempre o ser poético voa seus desígnios indecifráveis nas asas dos pássaros, nas cores dos pássaros, no canto dos pássaros. Galopa, desgovernado, no lombo de cavalos e se aquece sob o dorso das árvores solitárias.
Espalha suas súplicas diante da grei miúda e olvidada que rasteja pelos inóspitos celeiros dos becos, das grutas e das locas.
Pode andar de carroça ou de elevador. Está no sítio ou na cidade.
Brilha, no lavor da silvestre alquimia, quando o infinito se fecha, porém, renasce feito Fênix, na lavoura vital de sua própria mitologia. Sim, porque o ser poético, se é história, é, principalmente, mito.
E, como mito, “É o nada que é tudo”, como diz Fernando Pessoa. É aquela insólita oscilação entre “som e sentido”, como diz Paul Valéry. É o relâmpago de “uma metafísica instantânea”, como diz Gaston Bachelard. É “um olhar inaugural”, como diz Paul Klee.
Há um lampejo do ser poético no orgasmo dos elementos.
Ao aventurar-se pelo reino surdo das palavras, transfigurando-as em matéria musical, poliedro de sentidos, prisma imagético, tende a converter-se na forma do poema. Forma que, mesmo em sendo perfeita, parece não o reter, o ser poético, de todo, na sua exuberante clarividência e na sua inominável plenitude.
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VÍDEO - 02/01/2025