Atravesso a Rua Maroquinha Ramos a passos lentos, recordando um tempo que não foi meu, mas que carrego como se fosse. Com as mesmas ansiedades e as paixões do adolescente vindo do interior, ainda andando como camponês, a camisa aberta ao peito, alpercata de couro nos pés e nas mãos os sinais do massapê.
Passei outras vezes por esta via sem me dar conta de que ali, em décadas passadas, um jovem que como eu, vindo das mesmas brenhas do Brejo paraibano e portando a mesma sina, fez pouso na casa de número 322 da rua que caminha conosco.
Saindo de Tambiá, a Maroquinha Ramos era meu caminho até o mercado da Torre depois de passar a Rua Adolfo Cirne. Passava em frente à casa onde Gonzaga Rodrigues morou com sua mãe, dona Antonina, em meados dos anos de 1950, sem me dar conta de que ali o jovem repórter formulava nas lembranças o retrato de suas memórias da infância no engenho, em Alagoa Nova.
Ao contrário das vezes anteriores, naquela manhã quando novamente passei por aquela rua, desta vez na companhia de Gonzaga e seu filho Paulo Emmanuel, a impressão foi diferente. Paramos em frente à casinha, um tanto modificada. “Ao lado ficava o flamboyant, quando frondoso, com suas flores vermelhas, dava-me uma saudade do engenho Vitória”, nos conta.
Os devaneios poéticos do rapaz que recitava versos trepado nos bancos da Praça da Bandeira em Campina Grande, muitas vezes se perderam nas noites mal dormidas nesta rua, pensando no conforto para a mãe, a senhora de engenho criada à luz dos ensinamentos do Padre-Mestre Ibiapina e acostumada com a fartura dos pomares em redor de casa.
Observando a casa onde morou, o cronista não se absteve de revelar as lembranças de quando se acomodava sob seu teto. Falou de suas atividades de jornalista iniciante que germinaram durante décadas e que frutificaram, confirmando sua posição de ícone da crônica paraibana, poeta de coisas do cotidiano da cidade e de fatos de nossa história, a história da cidade que o acolheu adolescente. Textos primorosos, esguichados pela inspiração associada ao talento e primorosa memória.
Casa onde consolidou o modo cortês de afeto no trato aos seus leitores, também cativado pela beleza estética dos textos que continua idêntica setenta anos depois. Hoje é uma rua desolada, sem o silêncio de outrora, cheia de saudades nas marcas do tempo.
Na sua época a pequena casa de telha-vã sempre estava de janela e porta com a parte de cima abertas para receber o cumprimento dos transeuntes, o frescor do vento, o perfume das plantinhas da rua e permitir observar o vermelho do flamboyant.
Naquele tempo, enquanto sentia a presença dos que tiravam o pão, dos que esbanjavam falcatruas rondando os poderes públicos, na sua casa o ovo frito era a mistura do feijão. Neste lar modesto conheceu a boa companhia dos livros e a necessidade da leitura, a crônica dando lugar à poesia.
Olhando a casa, sem sair de dentro do carro, Gonzaga apontou o lugar onde existia o flamboyant de suas memórias. Indicou o lugar do quintal de vara que permitia namoricar com a jovem vizinha e ver por uma brecha a silhueta dela tomando banho em banheiro de palha a céu aberto. A mãe desta em seus afazeres diários, com o agradável do bom-dia, sempre acudindo com a meizinha e xícara com um nadinha de açúcar.
Percebi seus olhos brilhando ao contar essas coisas, observando o que restou da casa e da árvore que fizeram lembrar do sítio que anda com ele.
Comentou que saindo do jornal às madrugadas, caminhava a pé até esta emblemática rua, silenciosa e perfumada. Silêncio quebrado pelo latido dos cachorros e o apito dos guardas-noturnos. As grandes autoridades das noites, que o conheciam, sempre acenado com um “boa-noite”. Durante anos caminhava pelas ruas pensando estar no campo, parecendo um pastor de nuvens.
Seus olhos brilhavam e não escondiam o prazer quando olhava para o velho ambiente de suas acomodações. Lugar de onde alçou voos para a realização pessoal e a imortalidade das letras.
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