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Vi, há algum tempo, no feicibúqui, um “meme” envolvendo o conhecido professor de Língua Portuguesa, cujo nome omito, porque não tenho a sua anuência para revelá-lo, em que ele supostamente era mal-educado e agressivo com uma mulher, conhecida por estar no comando de uma das muitas ramificações do cristianismo. A suposta agressão teria sido porque a mulher se intitulou “bispa”. A suposta resposta do professor Pasquale teria sido nos seguintes termos:
“Além de herege, a senhora é burra, pois o feminino de bispo não é bispa, mas episcopisa”.
Vejamos. Em primeiro lugar, eu não acredito que o professor tenha dito isso ou tenha dito dessa maneira, se é que ele respondeu à “bispa”. Em segundo lugar, até onde eu sei, o dito professor, gostemos dele ou não, conhece a língua que ensina, sabendo, portanto, os mecanismos de seu funcionamento. E o mecanismo que está em questão é a flexão nominal de gênero.
A flexão nominal de gênero, na língua portuguesa, prevê, como essência, a troca da vogal temática, no caso “-o”, por uma desinência de gênero, no caso “-a”, o que só é possível existindo o par opositor masculino/feminino, como em meninO/meninA; lobO/lobA, tiO/tiA e assim por diante. O caso de “bispo” e “episcopisa” é o mesmo de “príncipe” e “princesa”, “sacerdote” e “sacerdotisa”, em que não existe flexão, mas derivação. Criou-se outra palavra, a partir do sufixo “-isa” ou “-esa”, que não se distinguem entre si, com as palavras guardando uma relação semântica entre si, sendo uma sempre masculina e outra sempre feminina, sem formar um par opositor, no sentido de uma ser o masculino ou o feminino da outra. Para ficar mais claro, não existe a simples troca da vogal temática “-o” pela desinência de gênero “-a”. A forma feminina é criada pela intermediação da derivação. E mais, nos exemplos aqui apresentados, o “-a”, é vogal temática, não desinência de gênero: princesA, sacerdotisA, episcopisA, uma vez que não existe princesO, sacerdotisO, episcopisO.
Qual seria, então, o feminino de “bispo”? Contrariando não o já referido professor, mas os que criaram o meme, achando que estavam certo e que, por uma diferença de ponto de vista religioso ou pessoal com a “bispa”, acreditaram que a agressão era a melhor forma de se vingar ou de resolver essas diferenças; contrariando as expectativas, portanto, digo que o feminino de “bispo” é “bispa”. Simples, não? Pode não estar abonado e verbetizado, mas está no sistema da língua. E se ainda não foi verbete adotado pelos dicionários é porque a igreja católica ainda é domínio de homens e não permite a ordenação de mulheres, nem reconhece, DE VERDADE, as demais vertentes do Cristianismo. Mas outros ramos da religião cristã já admitiram a função e, com o uso tornando-se mais frequente, o vocábulo tenderá a estar presente nos dicionários. Muitos acham que a língua é sua propriedade, esquecem que língua é, sobretudo, uso. É o Doutor Uso quem diz como vai ser a língua, o que não é segredo. O poeta Horácio, na sua Epístola aos Pisões, comumente conhecida como Arte Poética, já dizia isto. Muitos preferem ignorar o uso e, num falso purismo, pretendem manter a língua congelada e estéril. O léxico, meus caros, avança sempre.
Vamos a um pouco de história da língua, para entender a origem do vocábulo “bispo”. Inicialmente, esclareçamos que a nossa flexão de gênero, como tantos outros mecanismos morfológicos e sintáticos, vem do latim. Em latim, os nomes da primeira declinação são, em sua maioria, do gênero femininos, e com vogal temática “-a”, como puella, menina, e domina, senhora. Já os nomes da segunda declinação são, em grande parte masculinos, com vogal temática “-o”, como puer, menino (constata-se a vogal temática, nas formas do acusativo, puerum, e do dativo e ablativo singular, puero), e dominus, senhor. Desse modo, na passagem do latim para o português, o masculino mantém o “-o” como vogal temática, sendo não-marcado e com Ø (zero) para a designação de gênero. Uma vez que não já não há mais a classificação das palavras de acordo com as declinações, aquelas palavras femininas do latim que pertenciam à primeira declinação, passam ao português, apresentando o “-a” não mais como vogal temática, mas como desinência de gênero, quando houver o par opositor: magister/magistra, mestre/mestra; dominus/domina, senhor/senhora; lupus/lupa, lobo/loba.
O vocábulo “bispo” vem do latim episcopus, pertencente à segunda declinação, gênero masculino, significando originalmente um funcionário que inspecionava os mercados. Função exclusiva de homens. A palavra, oriunda do grego, é formada da preposição epí”, “sobre”, e do verbo skopéu, “ver”, “vigiar”, “observar”. Assim, o episcopus é “o que vê sobre”, “o que vigia a partir de um ponto”. Depois, com o Cristianismo, a palavra passou a designar uma das hierarquias dentro do catolicismo, posicionando o bispo acima dos padres. O bispo teria, então, a função de vigiar a fé cristã, a partir de sua posição privilegiada de membro do alto clero.
A transformação de episcŏpus em “bispo”, obedece aos critérios das leis fonéticas, quando da passagem do latim para as outras línguas. No caso do português a passagem foi a seguinte, lembrando que o acusativo é o caso lexicogênico, tomaremos a palavra nesse caso:
episcŏpum > (apócopope do “m” e metafonia do “u” em “o”) epíscopo > píscopo (aferése do “e”) > bispo (sonorização da medial surda “p” e haplologia da sílaba medial surda “co”)
O termo episcopisa é, pois, a forma que resgata a raiz latina, episcop-, acrescentando-se o sufixo “-is” e a vogal temática “-a”, criando, assim, uma palavra feminina, correspondente semântico à palavra masculina, já transformada, “bispo”.
Em suma, a questão é cultural. No tempo em que a palavra foi criada, seja para designar a função de um funcionário fiscalizador dos mercados, seja para designar uma hierarquia da igreja católica, essa palavra era destinada especificamente aos homens. Não havendo episcŏpa, pois mulheres não podiam ocupar essas funções, não se podia, portanto, falar de “bispa”. O estranho não é que nos dias de hoje, ainda haja uma reação à palavra, com tantas mulheres exercendo essa função. O estranho é ter sido criado um torneio morfológico para a criação de uma palavra, episcopisa, quando elas oficialmente não existiam.
Hoje, existem e elas não devem mais ser chamadas de episcopisas, mas de bispas.
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segurança - 22/01/2025