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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

O ônibus de Zé Lacerda

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publicado em 14/02/2025 ás 11h44

Demorou chegar. 1976, acho. Da zona rural à cidade, íamos à pé. Eu, Consola de Antônio Matias, Jola, Zé de Chiquinho, Pedro Félix…

Quando, na madrugada, eu ia sozinho à cidade, o medo me consumia. Aumentava a passada, olhava para um futuro que, sequer, sabia qual poderia ser. Em velocidade, eu mudava de pensamento, fazia, mentalmente, as tarefas da escola para enganar o medo.

Até hoje, de cabeça baixa, ando muito rápido, herança do tempo em que precisava chegar às sete da manhã no Colégio Estadual de Uiraúna.

O medo maior era de almas. Nunca vira uma, mas conhecia, de cor e salteado, todos os seus tipos e subtipos, suas vozes e seus trejeitos, as boas, as más, as melindrosas, as arrogantes.

Também pudera. Papai era exímio contador de “causos” sobre almas penadas. Nunca irei esquecer as três cabaças de fogo correndo atrás de um pobre coitado ao entardecer. Coisas de papai.

Um dia, a modernidade chegou no Sítio Saco Sinhazinha. O ônibus de Zé Lacerda. Eu nunca vira um ónibus e aquele era de verdade. Uma das coisas mais lindas que já vi. Como dele usufruir?

Impossível. Sequer tínhamos luz elétrica, mas as lamparinas muito me ajudaram no estudo das frações, proporções, regra de três.

Estuda ligeiro menino, o querosene é muito caro”, dizia mãe. Eu só pensava no ónibus de Zé Lacerda.

Não. O ónibus não era como os de hoje, transporte pago pelos municípios. Ah, nos anos setenta, o sertanejo era um desvalido e o Estado, um nanico, como querem, hoje, os defensores do Estado mínimo.

Pouquíssimas vezes viajei no ónibus. Pagas com dinheiro proveniente da cata de algodão. Não lembro da primeira, nem das viagem intermediárias, que foram raras. Da última, sim. Tem gosto e cheiro de solidão. Eu havia terminado a oitava série e voltava desesperado para o sítio. Meu Deus, o que eu iria fazer?

A cidade de Uiraúna não tinha colégio que ministrasse o segundo grau. Eu temia o futuro e minha sina fora selada. Iria trabalhar nas frentes de trabalho, as ações emergenciais contra a seca. O que eu iria fazer com minhas frações e proporções aprendidas à luz de lamparina?

professorchicoleite

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