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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Marco di Aurélio

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publicado em 19/02/2025 ás 07h00
atualizado em 18/02/2025 ás 19h55

 

É em certas manhãs de sábado que me sento à mesa de uma quase távola redonda, lá na Livraria do Luís. Gosto de ouvir meus parceiros contar histórias, debater ideias, costurar o disse-que-disse da vidinha ordinária, da cena política, da coisa cultural, dos malogros e maledicências da república das letras. Muitos pontificam ao sabor da prosa espontânea, fazendo o tempo passar à espera da hora sagrada do cerimonial no Bar de Lulinha, onde o pão e o vinho são substituídos pelo bode guisado e a caninha do brejo. Uma voz, no entanto, quero destacar, nesta Letra Lúdica de hoje. A do ator e cordelista Marco di Aurélio. E por que? Porque Marco di Aurélio não é qualquer um.

71 anos de idade, nascido na cidade de Bodocó, alto sertão pernambucano, logo cedo ganhou o mundo, experimentando a didática livre e dura da vida como um andarilho que não teme ventos nem tempestades. Sua vida foi viajar por fora e por dentro da espessura das coisas.

Ex-bancário, já fez de um tudo. Exerceu ofícios estranhos e variados, tais como: hipnoterapeuta, feirante, vendedor de jazigos, radioamador e fabricante de gaiolas de arame. É escritor, cineasta, garoto propaganda do forró-fest, ecologista, autodidata, abstêmio, habituado aos aromas do saber de experiências feito. Iniciou, mas não concluiu, os cursos de biologia e de educação física, embora tenha um certificado extra de psicanalise. Coordenou o “7 bocas de luz”, grupo de música e poesia que varava vilas e cidades do Nordeste, implantando a utopia das artes nos corações e mentes da gente interiorana. Parece um cavaleiro andante, um menestrel medieval.

De suas facetas, uma me atrai, em especial: a de causer, isto é, a de quem sabe e domina os sigilos da arte da conversação, à semelhança de um encantador de serpentes que tudo paralisa com a magia das palavras. Fatos pitorescos, piadas picantes, causos insólitos, narrativas miúdas e saborosas se misturam no seu bisaco de verdade e fantasia, para nos ofertar como prendas de prazer ao aconchego da escuta. Sabe narrar, descrever e refletir.

Se o assunto concerne à odisseia dos judeus pelos sertões nordestinos, todos silenciamos, para beber de suas sábias lições de história e etnografia, assim como emudecemos, respeitosos, se o tema desemboca pelas expressões idiomáticas dos dialetos regionais. Marco di Aurélio aprecia a ciência filológica e quer apalpar, em cada vocábulo, sua etimologia original no frescor dos primeiros significados. Outras matérias também aderem ao seu vocabulário de curiosidades e espantos, a exemplo do cangaço, do misticismo, das crendices, da farmacopeia popular, das lendas, festas e folguedos.

De altura mediana, magro e pardo. Cabelos compridos, amarrados, alvinhos como o tecido de algodão e barba espessa, longa e espichada como a dos profetas. Camisa e calça quase sempre da mesma cor, alpercatas de couro, tivesse um cajado, era igualzinho a um daqueles beatos, meio louco meio santo, que se achegava às taperas de Canudos para se juntar ao reino, feérico e desolado, de Antônio Conselheiro.

Pois bem: é esse tipo singular, misto de artista, intelectual e ativista da cultura, que sabe, como poucos, desenrolar os emblemas narrativos de um “causo”. Contar uma história que nos abre a perspectiva do dia e nos lança no puro mistério dos acontecimentos. Às vezes, faz de suas histórias motivos de inspiração para as sextilhas em redondilha maior de seus folhetos de cordel. “O pau-de-sebo no cabaré de Timbaúba”, que ontem me ofertou, demonstra bem a veia fabulatória de sua escrita poética.

Conheço muita gente dessa estirpe. Isto é, gente que sabe contar um “causo”, com leveza, cadência e desenvoltura; que possui o luminoso talento da prosa bem abastecida; que tem, na palavra, o vírus da beleza e o lampejo do esclarecimento. Gente que constitui, a seu modo e numa tonalidade toda peculiar, uma lúdica e fantástica tradição.

Cabeção, de Pombal, por exemplo, talvez seja o suprassumo dessa safra de eleitos, ao trazer à tona os episódios grotescos e risíveis da rapariga Creusa e do bêbado Biíno. Também de Pombal, citaria o saxofonista Teínha, o poeta Irani Medeiros e o escritor Tarcísio Pereira, todos advindos das glebas inóspitas que Teodósio de Oliveira Ledo intumesceu com o sangue dos indígenas mortos e violentados.

Humberto Melo, Fernando Teixeira, Flávio Tavares e Gonzaga Rodrigues também compactuam com as táticas narrativas dessa deliciosa tradição. Tradição que Marco di Aurélio cultiva, honra e enriquece. Quem duvidar, vá à Livraria do Luís, nas manhãs de sábado, peça licença e se sente à mesa para ouvi-lo e degustar os enredos que fia e desfia na correnteza da fala.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB